quarta-feira, abril 19, 2006

Como esticar os dedos para fazer uma asa

Esta criatura com ar sinistro é um embrião de um morcego com 80 dias. Com esta idade já é visível a característica mais marcante destes animais: os extraordinariamente longos dedos das mãos. Os morcegos são uma história de sucesso entre os mamíferos: uma em cada cinco espécies de mamíferos conhecidos é uma espécie de morcego. Estas criaturas evoluiram muito provavelmente de animais semelhantes a musaranhos, mas a forma como ocorreu essa evolução não é conhecida, pois não foram encontradas quaisquer formas intermédias. O registo fóssil dos morcegos mostra que as primeiras formas, há cerca de 50 milhões de anos, tinham asas essencialmente iguais às formas modernas. Isto sugere uma evolução muito rápida, quase súbita, das asas. [... ler mais]

A ausência de fósseis não desencorajou os cientistas, que num artigo recente nos Proceedings of the National Academy of Sciences (ref1), da autoria de Karen E. Sears e colegas, recorrem ao estudo de embriões de ratos e de morcegos para descobrirem as diferenças na expressão dos genes que controlam o desenvolvimento dos dedos das mãos de ratos e morcegos, e que são também responsáveis pelas diferenças entre os dedos dos pés e das mãos dos morcegos. Paradoxalmente tudo parece repousar na expressão de uma única proteína. Numa tradução livre do resumo:

Os mais antigos fósseis de morcegos assemelham-se às formas modernas ao possuirem dedos muito alongados para suportar a membrana da asa, que é a marca anatómica do vôo propulsionado. Para confirmar quantitativamente estas semelhanças, executámos uma análise morfométrica de ossos da asas de morcegos modernos e de morcegos fósseis. Verificámos que os comprimentos dos terceiro, quarto e quinto dedos (os elementos mais importantes no suporte da asa) permaneceram constantes relativamente ao tamanho do corpo nos últimos 50 milhões de anos. Esta ausência de formas transicionais no registo fóssil levou-nos a procurar noutros locais para compreender a evolução da asa dos morcegos.

Os "outro local" de que os autores falam é o desenvolvimento embrionário, Como os morcegos descendem de animais que teriam mãos semelhantes às dos ratos, os autores resolveram comparar o desenvolvimento relativo nos embriões de ratos (20 dias) e morcegos (120 dias). Como referem no que se segue, o mecanismo de diferenciação é simples:
Ao investigar o desenvolvimento embrionário, verificámos que os dedos nos morcegos (Carollia perspicillata) são inicialmente semelhantes em comprimento aos dos ratos (Mus musculus) mas que, subsequentemente, os dedos do morcegos se alongam grandemente. O momento do desenvolvimento da mudança no comprimento dos dedos aponta para uma mudança na cartilagem longitudinal, um processo que depende da proliferação e diferenciação dos condrócitos. Verificámos que os dedos dos membros anteriores dos morcegos exibem taxas relativamente elevadas de proliferação e diferenciação de condrócitos. Mostramos que a proteína morfogenética do osso (Bmp2) pode estimular a proliferação, diferenciação e aumento no comprimento dos dedos nos membros anteriores dos embriões dos morcegos.

Esta mudança nos padrões de crescimento entre as mãos dos ratos e morcegos ocorre a meio do período de gestação. Antes disso os membros anteriores de ratos e morcegos são virtualmente idênticos, como se pode ver na imagem abaixo (o embrião do rato tem cerca de 12 dias e meio).


Durante o período em que os dedos das mãos dos morcegos "esticam", os dedos dos pés dos morcegos e ratos mostram desenvolvimento idêntico. Os autores sugerem que a diferença observada nas mãos tem a ver com um acréscimo de cerca de 35% na expressão de um factor de crescimento do tecido ósseo (a proteína Bmp2).
Além disso, mostramos que a expressão e a sinalização de Bmp2 são aumentadas no desenvolvimento embrionário dos dedos nos membros anteriores dos morcegos relativamente aos dedos nos membros posteriores dos ratos ou morcegos. Considerados em conjunto, os nossos resultados sugerem que uma regulação a nível superior do ciclo do Bmp2 é um dos factores mais importantes no desenvolvimento do alongamento dos dedos dos membros anteriores dos morcegos, e que é também potencialmente um mecanismo chave no seu elongamento evolutivo.

Trata-se de uma pesquisa que já tinha sido apresentada em congressos em 2004, e é agradável ver que finalmente foi publicada. Como vemos a parte da evolução das asas parece relativamente simples e isso pode explicar a rapidez com que os morcegos aparecem no registo fóssil. O pequeno acréscimo de 35% no regulador de crescimento é provavelmente o que tornou possível o vôo com os dedos das mãos 50 milhões de anos atrás.

Referências
(ref1) Karen E. Sears, Richard R. Behringer, John J. Rasweiler IV, and Lee A. Niswander (2006). Development of bat flight: Morphologic and molecular evolution of bat wing digits. Proc. Natl. Acad. Sci. USA. Laço DOI.

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