quarta-feira, abril 12, 2006

Pinguins, imprensa e ADN com 60 milhões de anos

Eu tento sempre acompanhar a descrição das descobertas, de que falo aqui no Cais de Gaia, de citações dos artigos originais, e em geral da tradução do resumo do artigo. Não se trata de uma questão de preguiça, mas apenas de mostrar o que vem na versão original, sem as especulações que acompanham a maioria dos comunicados de imprensa. Aliás, para lá das especulações, os meios de comunicação, ao adaptarem o formato, tamanho e conteúdo das notícias, para as tornarem ou mais curtas ou "mais interessantes", originam muitas vezes deturpações curiosas da mensagem original. Neste momento há milhões de pessoas que julgam que ADN de pinguins com mais de 60 milhões de anos está guardado algures num laboratório na Nova Zelândia. [... ler mais]

Tudo começou com um artigo sobre a descoberta de um antepassado do pinguim moderno que teria vivido há mas de 60 milhões de anos, e do qual falámos aqui no dia 20 de Março. Ora a história foi acompanhada de um comunicado de imprensa, que foi adaptado pela Australian Broadcasting Company numa versão que não é clara acerca dos métodos usados para datar a descoberta nem acerca da forma como se estabeleceu que eram pinguins:

New analysis of the world's oldest fossil penguins confirms some birds survived the mass extinction that killed the dinosaurs 65 million years ago, researchers say. The penguins once lived in shallow seas off New Zealand's east coast 60 million years ago. Now a molecular study, published in the journal Molecular Biology and Evolution, links them closely to modern penguins.

Uma tradução razoavelmente fiel do que está escrito acima seria:
Uma nova análise dos fósseis mais antigos de pinguins confirma que algumas aves sobreviveram à extinção em massa que matou os dinossauros 65 milhões de anos atrás, dizem os investigadores. Os pinguins viveram em tempos em mares pouco profundos na costa este da Nova Zelândia 60 milhões de anos atrás. Agora um estudo molecular, publicado na revista Molecular Biology and Evolution, liga-os de perto aos pinguins modernos.

Neste trecho há logo algo que não está correcto. Determinou-se que os fósseis eram pinguins pelas propriedades do esqueleto, não por nenhuma análise molecular. Mas de resumo em resumo, a história foi encurtada um pouco mais e deu azo no Dominion Post ao que se transcreve abaixo.
Dna tests on the Waimanu penguin fossils, found near the Waipara River, have determined they are between 60 million and 62 million years old - or up to 10 million years older than any other penguin remains discovered.

Que pode ser traduzido aproximadamente por
Testes de ADN nos fósseis de pinguins do Waimanu, encontrados próximo do Rio Waipara, determinaram que têm entre 60 a 62 milhões de anos, ou mais 10 milhões de anos que quaisquer outros restos de pinguins encontrados.

Isto está completamente errado. Não foi assim que os fósseis foram datados, aliás nem se encontrou ADN nenhum nestes vestigíos. A idade dos fósseis foi determinada da forma tradicional, usando a estratigrafia do terreno, que por sua vez terá sido datada por comparação como outros terrenos, ou usando análises de isótopos radioactivos. O ADN degrada-se muito rapidamente e ao fim de uns poucos milhares de anos já há muito pouco com que trabalhar, mesmo em animais congelados ou usando partes mais robustas como a polpa dos dentes. Embora os métodos de sequenciação metagenómicos desenvolvidos recentemente tenham permitido sequenciar o ADN nuclear de mamutes com muitos milhares de anos, deve notar-se que nesse caso eram restos congelados e não fossilizados; essas técnicas nunca poderiam ser utilizadas em restos fossilizados com milhões de anos. Tal como discutimos aqui na contribuição do dia 20 de Março a análise de ADN que os cientistas fizeram foi a aves modernas ou extinctas recentemente (como as moas). A data de 60 milhões de anos do Waimanu foi usada pelos cientistas para calibrar os resultados, pois mostra que nessa altura os antepassados dos pinguins já se tinham diferenciado das restantes aves modernas.

Não deixa de ser interessante a forma como os meios de comunicação se limitam a processar informação sem verificar a fonte original. Como é bem sabido, cada vez que se reproduz algo com alterações de conteúdo a mensagem degrada-se e chega-se facilmente a algo muito diferente da mensagem original. Já agora, se alguém conseguir encontrar textos da cobertura jornalística deste achado em Portugal ou no Brasil, por favor enviem-me os laços. Gostaria de comparar.

Referências
(ref1) Kerryn E. Slack, Craig M. Jones, Tatsuro Ando, G. L. (Abby) Harrison, R. Ewan Fordyce, Ulfur Arnason, and David Penny (2006). Early Penguin Fossils, plus Mitochondrial Genomes, Calibrate Avian Evolution. Molecular Biology and Evolution. Laço DOI.

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