sexta-feira, abril 28, 2006

Maus como as mães


Quão diferentes poderiam ser as coisas se as mulheres tivessem tido um papel mais dominante na história humana? É possível que não fossem tão diferentes como isso. Com efeito, existe na natureza um exemplo de uma sociedade de predadores dominada pelas fêmeas da espécie. Trata-se da hiena malhada, de nome científico Crocuta crocuta. Um conjunto de características únicas fazem destes animais um objecto de estudo fascinante. As hienas malhadas vivem em grupos sociais que podem incluir 40 a 60 indivíduos, com uma estrutura hierárquica bastante rígida, e uma organização de tipo quase militar. A sociedade das hienas faz lembrar em muitos aspectos grupos de primatas como os dos babuínos, mas com uma inversão no estatuto de machos e fêmeas. [... ler mais]

Um artigo sobre estas criaturas acaba de sair na Nature (ref1) da autoria de Dloniak e colegas, e eu não resisto a discuti-lo aqui. A imagem ao lado mostra exactamente a primeira autora do estudo a pesar uma das hienas. Numa tradução livre de um excerto da introdução do artigo:

A sociedade da hiena malhada é estruturada numa hierarquia de dominância rígida, e a posição social do indivíduo determina a sua prioridade no acesso aos recursos, bem como o seu sucesso reprodutivo. Num grupo social, as hienas fêmeas variam por isso consideravelmente no que respeita a condição, dependendo do estatuto social que herdam das suas mães. As fêmeas das hienas malhadas são geralmente maiores que os machos, e exibem genitais fortemente masculinizados através dos quais o parto é dificílimo. As fêmeas são também mais agressivas que os machos e socialmente dominantes em relação a eles.

A submissão que os machos parecem aceitar de forma tão surpreendente tem custos mas também benefícios:
Em contraste com a maioria dos machos dos primatas, as hienas macho observadas fora do seu território natal comportam-se de forma submissa face a cada membro da mesma espécie que encontrem, qualquer que seja o seu sexo, idade, ou tamanho corporal relativo. Como resultado, os machos caem inevitavelmente na hierarquia quando se dispersam e sofrem um declínio substancial na prioridade de acesso ao alimento aquando do abate de ungulados. Contudo, apesar desse custos energéticos da emigração, os machos raramente acasalam a menos que dispersem. Logo, de um ponto de vista adaptativo, os machos parecem "trocar" comida por sexo quando dispersam dos seus clãs natais.


Os genitais das hienas malhadas fêmeas são de facto tão semelhantes aos dos machos que Aristóteles, por exemplo, pensava que as hienas eram hermafroditas. A ilustração ao lado mostra uma fêmea grávida com alguns detalhes do aparelho reprodutor feminino visíveis. O tubo, que atinge cerca de 15 cm de comprimento fora do corpo, não se trata de um pénis, embora se assemelhe: esta é na verdade a forma que tomam os orgão genitais femininos. Não custa a imaginar as dificuldades que algo tão peculiar representa para a cópula, e sobretudo para o parto. Por incrível que pareça, para nascerem as pequenas hienas têm que percorrer toda a estrutura. As dificuldades em fazer passar duas crias através de um tubo que, mesmo após alargar para o dobro do diâmetro, fica apenas com cerca de cinco centímetros da largura, são enormes, e muitas fêmeas morrem ao tentar dar à luz a primeira ninhada. É óbvio que se esta masculinização das hienas acarreta custos elevados, também deve acarretar benefícios.

Para tentarem perceber melhor os mecanismos que levam a esta masculinização das fêmeas das hienas os autores resolveram estudar os níveis hormonais das diferentes fêmeas, em particular durante os períodos de gravidez.
Excepto durante a gravidez, as hienas fêmeas têm níveis de testosterona no sangue inferiores aos dos machos adultos, indicando que os efeitos dos andrógenos não explicam a diferença de agressividade em função do sexo documentada na espécie. Contudo, os ovários de hienas fêmeas grávidas produzem grandes quantidades de hormonas esteróides andrógenas durante a segunda metade da gestação, e estas atravessam a placenta atingindo o feto em desenvolvimento. Logo, as crias de hiena de ambos os sexos são expostas a altas concentrações de andrógenos durante a vida fetal.

A forma como os autores se propuseram estudar isto pode parecer pouco digna mas foi eficaz.
Testamos aqui a hipótese de que a exposição pré-natal das crias a andrógenos afecta o fenótipo da descendência nas hienas. Investigamos em primeiro lugar os padrões de concentração de andrógenos fecais ao longo da gestação em fêmeas grávidas.

OS autores recolheram 53 amostras fecais de um total de 43 gravidezes de 27 hienas fêmeas adultas, que foram congeladas, guardadas e posteriormente analisadas. Não deixa de ser estranho pensar que após tantos anos de faculdade, mestrados e doutoramentos, o emprego destes cientistas consista em grande parte em seguir hienas e recolher os seus excrementos. Os resultados da análise são descritos no que se segue.
Mostramos que as concentrações de andrógenos em hienas malhadas fêmeas (Crocuta crocuta) são mais elevadas durante a fase tardia da gestação em fêmeas dominantes que em fêmeas subordinadas. Para além disso, quer as crias machos quer as crias fêmeas nascidas de mães com concentrações mais elevadas de andrógenos na fase tardia da gravidez exibem taxas de agressividade mais elevadas e comportamento de "montar" que crias nascidas de mães com concentrações de andrógenos mais baixas.

A sugestão dos autores é que a vantagem tem a ver com os hábitos alimentares das hienas.
Os nossos resultados oferecem o primeiro laço definitivo entre andrógenos pré-natais e agressividade em fêmeas de hienas malhadas, e apoiam a hipótese que a selecção para agressividade debaixo de uma intensa competição para se alimentar foi a pressão selectiva inicial que levou ao aumentar da agressividade da agressividade e de outras características masculinizadas das hienas fêmeas. A agressividade nas hienas malhadas fêmeas deve ser adaptativa porque a competição pelo alimento nesta espécie é muito intensa, e as fêmeas mais capazes de desalojar os congéneres do acesso ao alimento nos locais de abate de ungulados obtêm o sucesso reprodutivo mais elevado.


Há um outro aspecto mais curioso que os autores focam.
A dominação social e a masculinização das fêmeas tornam o sexo extremamente desafiador para as hienas macho, pelo que machos que capacidade de acasalamento mais elevada deverão ser favorecidos pela seleção natural. Orientar correctamente a fêmea durante o acto de montar é crítico para o macho conseguir a intromissão durante o acto sexual, e a quantidade de práctica que o macho consegue cedo na vida pode afectar profundamente o seu sucesso reprodutivo.

Na verdade dada a anatomia dos orgãos genitais femininos a tarefa dos machos hiena afigura-se-me particularmente difícil, e percebo que precisem de treinar bastante. Infelizmente não consegui nenhuma imagem que ilustrasse o acto. Se algum dos leitores me conseguir arranjar pornografia de Crocuta crocuta desde já agradeço. Como despedida eis mais uma imagem destes seres, que embora tão agressivos, são mães extremosas.


Ficha técnica
As imagens utlizadas nesta contribuição, bem como alguma da informação, foram retiradas da página de Kay Holemkamp, co-autora do artigo indicado como ref1 abaixo.

Referências
(ref1) S. M. Dloniak, J. A. French and K. E. Holekamp (2006). Rank-related maternal effects of androgens on behaviour in wild spotted hyaenas. Nature 440, 1190-1193. Laço DOI.

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