sexta-feira, novembro 24, 2006

A importância de ter pernas curtas quando lagarto come lagarto

Esta contribuição não tem a ver com os eventos futebolísticos de quarta-feira. Aliás os lagartos de que vou falar nem sequer equipam de verde. A criatura da imagem é um anole castanho, de seu nome científico Anolis sagrei. Trata-se de um animal endémico das Baamas que coloniza algumas pequenas ilhotas da região. Os anoles são bons trepadores e podem subir a ramos e superfícies lisas, mas encontram-se também muitas vezes no chão. São notáveis corredores e numa ilha livre de predadores os animais com maiores capacidades atléticas (pernas maiores) têm alguma vantagem sobre os animais mais lentos. Ora alguns cientistas resolveram colocar nalgumas dessas ilhas um outro lagarto, a iguanita de rabo enroscado, Leiocephalus carinatus, e ver o que se passava. É que a iguanita também é boa corredora e não desdenha engolir qualquer anole que se meta a jeito. [... ler mais]

Os resultados desde estudo em selecção "natural" foram publicados num artigo muito curto de Jonathan Losos e colegas na revista Science (ref1). Numa tradução livre do resumo:

Serão as espécies capazes de se adaptar quando o ambiente muda? Ao conduzir experiências em ambientes naturais, os biólogos podem estudar a forma como processos evolucionários tais como a selecção natural operam através do tempo. Nós previmos que a introdução de um predador terrestre iria primeiro seleccionar lagartos de pernas mais compridas, que são mais rápidos, mas à medida que os lagartos se deslocavam para ramagens mais elevadas para evitar o predador, a selecção iria inverter-se e favorecer os indivíduos de pernas curtas que se movimentam melhor aí. A nossa experiência em 12 ilhotas confirmou estas previsões em apenas uma geração, mostrando assim a velocidade com que as forças evolucionárias podem mudar durante tempos de fluxo ambiental.

O que os autores fizeram foi estudar 12 ilhas, 6 em que introduziram predadores, e 6 em que não o fizeram, para servir de controlo. Nessas ilhas os autores verificaram o tamanho das patas e o tempo que os animais passavam nos ramos antes da introduzirem as iguanitas, 6 meses depois de o fazerem e um ano depois de os predadores terem feito a sua aparição. Seis meses após o início da experiência, a média do tamanho das patas dos sobreviventes era maior, ou seja mais pernas curtas tinham sido comidos, mas 12 meses depois a média do tamanho das patas era substancialmente menor, os pernas longas tinham sido comidos. Os pernas curtas sobreviventes tinham maior facilidade em trepar às plantas que os penas longas e evitavam mais facilmente os lagartos com o rabo enrolado.

O tal estádio intermédio de que falam os autores é um pouco como aquela velha anedota: dados dois indivíduos a fugirem de um urso, um que queira escapar não tem que se preocupar em correr mais que o urso, basta-lhe correr mais que o outro. As iguanitas ao correrem atrás dos anoles no chão comeram primeiro os lentos e, quando eles se tornaram raros, os rápidos. Deve no entanto notar-se que a chave para a sobrevivência a longo termo foi outra: os autores do artigo referem que houve uma mudança de comportamento dos anoles sobreviventes. Não escaparam apenas os que por algum tipo de predisposição inata passavam já mais tempo nos ramos antes da invasão. Considerando apenas os anoles que escaparam, antes da invasão esses animais passavam 60% do tempo empoleirados em ramos, após a invasão passavam 90%. Os anoles que escaparam não eram nada burros.

Esta é sem dúvida uma experiência muito interessante em aptidão evolutiva, e como ela pode mudar rapidamente. Se deixássemos estes ecossistemas evoluírem durante milénios, sem mais interferências, é provável que a tendência se acentuasse. Ou talvez não, é que estas ilhotas são varridas periodicamente por furacões. Esse aspecto está ligado a algo que, desde o início, me pareceu curioso nesta história: o aspecto ético da coisa. Aposto que a maior parte dos leitores não se sentiu muito incomodada pelo destino dos anoles, afinal são "apenas" lagartos. No entanto muitos considerariam uma crueldade se se tratasse de uma população de aves. Após pesquisar um bocado descobri que na verdade o que os autores fizeram foi apenas "apressar" um pouco a natureza. As ilhotas têm qualquer coisa como uns meros 750 metros quadrados cada, estão praticamente ao nível do mar, e ficam a pouco mais de 100 metros das massas de terra maior. As iguanitas devoradoras de anoles invadem-nas com frequência. As pequenas ilhas são no entanto varridas frequentemente por furacões, e as populações de iguanitas residentes, e muitas vezes mesmo as de anoles, têm uma tendência para se afogarem, e se extinguirem até à invasão seguinte. Daí que essas ilhotas estejam frequentemente livres de predadores.

Os anoles parecem-se vagamente com lagartixas mas os machos possuem uma bela papada em leque, colorida com uns garridos tons de laranja e amarelo, que usam como uma espécie de sinal para marcar o território. Merecem mais uma foto.

Ficha técnica
Imagem do anole no ínicio da contribuição cortesia de Alison Phillips, retirada desta página da Wikimedia Commons.
Outra imagem de anole cortesia de Stephen Lea, retirada desta página da Wikimedia Commons.

Referências
(ref1) Jonathan B. Losos, Thomas W. Schoener, R. Brian Langerhans, David A. Spiller (2006). Rapid Temporal Reversal in Predator-Driven Natural Selection. Science, Vol. 314. no. 5802, p. 1111. Laço DOI.

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