Esta belíssima ave de rosto azul tem o nome científico de Opisthocomus hoazin, sendo popularmente conhecida no Brasil por cigana. Trata-se de um animal peculiar devido a muitos e variados aspectos. Esta foi a melhor imagem que encontrei permitindo a livre divulgação, mas não faz verdadeiramente justiça ao aspecto distinto do animal. Para apreciarem melhor a "verdadeira ave cigana" este filme vale por vários milhares de palavras. Eis aqui outro filme, desta vez mostrando o dorso. Mas as parecenças ficam-se apenas pela beleza visual, como dançarinas e cantoras as aves ciganas não fazem jus ao nome. Os O. hoazin são bastante desajeitados, sobretudo a voar, e quanto aos dotes canoros deixam muito a desejar. Apesar disso, as aves ciganas são muito, mas mesmo muito interessantes. Parte desse interesse tem a ver com a sua dieta, que não tem equivalente entre os seus parentes de plumas. [... ler mais]
As aves ciganas são herbívoras, o que em si não tem nada de extraordinário. Atentem no entanto numa amostra representativa da dieta destas criaturas.
Esta imagem foi retirada da tese de doutoramento de Antje Müller, de que falarei aqui numa contribuição posterior, e o detalhe do garfo e da faca é delicioso. Se notarem bem estes vegetais são folhas, as aves ciganas são aquilo que se designa por animais folívoros. Esta dieta é inesperada num animal endotérmico voador, ou seja uma criatura com metabolismo elevado, pois as folhas são muito pouco nutritivas, practicamente só têm celulose. Ora os vertebrados não digerem celulose sem ajuda: precisam do auxílio de bactérias para a transformarem em acúcares simples. Isso é o que fazem por exemplo os ruminantes, e as preguiças. Esses animais possuem compartimentos especiais no seu aparelho digestivo, câmaras de fermentação, onde as bactérias "quebram" a celulose da matéria vegetal. A ave cigana tem algo semelhante. Essa extraordinária adaptação é descrita num artigo de Alejandro Grajal na revista The Auk (ref1). Numa tradução livre do resumo:A ave cigana (Opisthocomus hoazin) é uma ave única, um folívoro obrigatório com um sistema de fermentação pré-digestivo bem desenvolvido. A capacidade relativa do seu aparelho digestivo é equivalente a 9% da massa corporal adulta (cerca de 680 gramas). O grande papo e o esófago inferior representam 77% da capacidade total do aparelho digestivo. O papo está repartido em duas câmaras interconectadas, e o esófago inferior é um orgão com várias câmaras. Ambos são invulgarmente musculados com constrições entre câmaras. O revestimento interior do papo e do esófago tem estrias longitudinais cobertas por epitélio cornificado. O papo e o esófago são os orgãos principais para a fermentação, com um pH e níveis de ácidos-gordos voláteis equivalentes aos encontrados em mamíferos com fermentação pré-digestiva.
Eis aqui um esquema do aparelho digestivo do O. hoatzin, não incluindo os intestinos:
Neste esquema o A é o papo, B o esófago inferior, C o proventrículo, D a moela, E indica o esterno da ave, e F indica uma porção para lá da ponta do esterno onde a ave tem uma espécie de calo. A ave cigana passa grande parte do seu tempo apoiada neste calo do esterno quando está empoleirada de papo cheio.
O resumo conclui com:As adaptações extremas do sistema digestivo da ave cigana são mais próximas das dos mamíferos pequenos com fermentação pré-digestiva, que das presentes em qualquer outra ave conhecida. Isto sugere que um mesmo conjunto de constrangimentos evolutivos pode afectar a evolução de fermentação pré-digestiva nos vertebrados.
Há consequências curiosas nestas adaptações. O papo gigantesco do O. hoazin não deixa grande espaço para os músculos de vôo. Isso explica o pobre desempenho do O. hoazin como voador. Alejandro Grajal nota ainda nas conclusões do artigo que uma câmara de fermentação deste tipo é algo de inesperado, do ponto de vista teórico, num animal voador endotérmico de 680 gramas. Segundo a teoria, um animal endotérmico com menos de 3 a 5 kg não devia ser capaz de preencher os seus requesitos metabólicos usando apenas fermentação pré-digestiva. A ave cigana tem por isso que ser extraordinariamente eficiente em todo este processo. Para além das adaptações fisiológicas, algumas características da dieta, como a maior facilidade de digestão dos rebentos jovens, podem ajudar a explicar como este dispositivo funciona tão bem nesta ave.
Esta é apenas a primeira de pelo menos três contribuições que irei colocar sobre as aves ciganas, um tema que vem na sequência de duas contribuições anteriores. Explicarei melhor a motivação na terceira contribuição desta série. Na próxima falarei das asas das aves jovens e na ansiedade que os turistas provocam nos juvenis destas criaturas.
Ficha técnica
Imagem do Opisthocomus hoazin no início da contribuição cortesia de Anke Poddel, tirada desta página na Wikimedia Commons.
Referências
(ref1) Alejandro Grajal (1995). Structure and function of the digestive tract of the hoatzin (Opisthocomus hoazin): a folívorous bird with foregut fermentation. The auk 112(1):20-28.
sexta-feira, novembro 03, 2006
A bela cigana que gosta de folhas
Por CDG laço permanente
Etiquetas: Biologia
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