quarta-feira, outubro 22, 2008

A minha bebida com gelo... e minhocas

Os artigos sobre o famigerado aquecimento global, quiça de origem antropogénica, têm os seus heróis e vilões no mundo animal. O herói parece ser o urso polar, a que foi atribuído o estatuto de espécie protegida, apesar de manter uma população estável. Confesso que não estou preocupado por aí além com o urso polar. É que o gelo já deixou de cobrir os mares do Ártico no passado e eles sobreviveram. Os vilões parecem ser os infelizes tubarões, com vozes de alarme a ecoarem por toda a imprensa, em Fevereiro deste ano, por causa de um possível acesso dessas criaturas aos mares da Antártida. Como explica a Lúcia Malla, não era razão para tanto, pois ao ritmo a que estão a desaparecer estarão extintos na altura em que tal hipotética invasão deveria acontecer. Mas há criaturas que poderiam ser muito mais afectadas e delas ninguém fala. Todos ouvimos falar do fim anunciado de grande parte dos glaciares, só que ninguém refere a interessante fauna e flora das grandes geleiras deslizantes. O lápis aqui ao lado está colocado ao lado de um bocado de gelo, e as coisinhas pretas são minhocas da espécie Mesenchytraeus solifugus. Essas minhocas não foram colocadas no gelo apenas para se conservarem entre estudos. Estes animais vivem no gelo dos glaciares e não sobrevivem fora desse meio. [... ler mais]

O solifugus no nome deste bicharoco significa "que foge do Sol", e descreve um dos hábitos da criatura, que se "enterra" no glaciar durante os períodos de luz. Mas apesar do local onde vive parece uma minhoca normal:

É no entanto fortemente pigmentada (estranho para um bicharoco que evita o Sol).

As minhocas do gelo são difíceis de observar e a literatura sobre elas não é tão abundante como isso. Parecem estar confinadas a uma região não tão vasta como isso da América do Norte. O artigo que descreve a distribuição destas curiosas criaturas é da autoria de Paula Hartzell e colegas na revista Canadian Journal of Zoology (ref1). Numa tradução livre do resumo:

As minhocas do gelo, Mesenchytraeus solifugus e Mesenchytraeus solifugus rainierensis (Enchytraeidae), são os únicos oligoquetas conhecidos adaptados à vida no gelo. Recolhemos exemplares de minhocas do gelo em mais de 100 populações em toda a região do pacífico-noroeste da América do Norte. A sua distribuição actual cobre ~2500 km ao longo da costa do Pacífico, do centro-sul do Alasca ao centro do Oregão, encontrando-se a maior parte das populações em glaciares temperados de altitude relativamente baixa. Análises filogenéticas baseadas sobre a sequenciação partial dos locus de ADNr nuclear e de sub-unidade I do citocromo c oxidase (COI) mitocondrial revelam a existência de dois clados distintos (boreal e austral).

Clado é um termo que vem da palavra grega para ramo, e é utilizado em análises filogenéticas para descrever ramificações nas árvores filogenéticas, que descrevem as relações de parentesco entre organismos. Neste caso, as minhocas boreais (ou seja do norte) são mais aparentadas entre si do que qualquer elas é com as minhocas austrais (isto é do sul).
O clado boreal agrupa todas as populações do Alasca, ao passo que o clado austral contém as populações da Colúmbia Britânica e dos estados de Washington e Oregão. Não encontrámos nenhuma indicação de fluxo genético entre essas duas linhas, nem entre as populações de glaciares não contíguos na totalidade da área de distribuição. Os nossos resultados fazem crer que os mecanismos de dispersão das minhocas do gelo são sobretudo de tipo activo; existe contudo um caso de dispersão passiva a assinalar no extremo sul da sua área de distribuição.

Ou seja, cada glaciar contém a sua população separada dos outros glaciares. Não posso ser só eu a achar que há algo errado com os movimentos "ambientalistas" e o seu hábito de escolher criaturas fofinhas para estandartes das suas causas. Quantos de vocês já tinham ouvido falar das minhocas do gelo e do perigo que correm caso os glaciares desapareçam?

Claro que aqui se põe a questão, esses glaciares estarão de facto a desaparecer? Parece que sim, a maioria deles tem vindo a recuar de forma mais ou menos pronunciada nos últimos duzentos anos. Curiosamente, a excepção foi o Inverno de 2007-2008, em que caiu um razoável volume de neve, que se manteve durante os meses de Verão, razoavelmente frios, e que levou a um acréscimo da quantidade de gelo em muitos glaciares do Alasca. Mas um bom ano não significa que as minhocas do gelo estejam safas, seria preciso que a coisa se repetisse nos anos que se seguem.

Mais sobre as extraordinárias minhocas do gelo amanhã.

Ficha Técnica
Imagens retiradas da página da North Cascades Glacier Ice Worm Research mantida por Mauri S. Pelto.

Referências
(ref1) Paula L. Hartzell, Jefferson V. Nghiem, Kristina J. Richio, and Daniel H. Shain (2005). Distribution and phylogeny of glacier ice worms (Mesenchytraeus solifugus and Mesenchytraeus solifugus rainierensis). Can. J. Zool. 83(9): 1206–1213. doi:10.1139/z05-116.

3 comentários:

João Carlos disse...

Não posso ser só eu a achar que há algo errado com os movimentos "ambientalistas" e o seu hábito de escolher criaturas fofinhas para estandartes das suas causas.

"Algo errado" em que?... Uma campanha propagandística nunca apela para a razão das pessoas (que sabemos ser moeda rara...) e sim para seu lado "emotivo". E só acredita que um urso polar é "fofinho" quem está a ver uma cena com filhotes brincalhões, filmada de uma distância bem segura!...

(Isso cá me lembra a resposta de um diretor da Metro, ao recusar a Disney seu personagem "Mickey": "Quando as mulheres virem um rato enorme na tela, vão sair correndo do cinema!")

Mas eu duvido que você consiga apoio a uma campanha contra o "aquecimento global" (que tem muito mais por trás do que a simples elevação da temperatura média) usando minhocas como estandarte!...

Anónimo disse...

Por acaso já tinha visto um excerto de um programa da national ou da Dicobery ou Odisseia... não sei bem, sobre estas minhocas, no qual os "pobres" cientistas escavavam, escavavam, escavavam e não encontravam os bichinhos até que por qual Happy ending holliwoodesco elas lá apreceram.
Agora fiquei a saber um pouco mais sobre o assunto.
Agradecido
Quanto à escolha de simbolos para campanhas ambientalistas, vejamos um exemplo: investimos imenso na preservação do lince-ibérico (será que os há em Portugal?!) e deixamos degradar-se um património científico valiosíssimo como é todo o Cabo Mondego.
São opções e sem dúvida o linde é muito mais bonito.

Flávia disse...

Dando os devidos créditos, levarei esse post e o próximo para minha aula de biologia sobre anelídeos. Eu fui a única da classe a saber da existência da existência de minhocas do gelo, e quando fui pesquisar na internet, realmente percebi porque sou a única: há pouquíssimo material falando sobre esses animais!
O texto aqui está ótimo, parabéns!
Abraço, Flávia
http://fcgiraldes.blogspot.com/