quinta-feira, outubro 16, 2008

Um rapaz e o seu cão, 26 mil anos atrás

Algures em França existe uma gruta chamada Chauvet. No interior da gruta abundam as marcas dos seus ocupantes passados, humanos e não humanos. Entre as mais extraordinárias está uma pista de cerca de 50 metros com as pegadas de um único ser humano. Mostra-se aqui a primeira pegada desse trilho, um pé esquerdo com 21.2 centímetros de comprimento e largura máxima de 9.2 centímetros. Nos europeus modernos a morfologia e dimensões corresponderiam a uma criança do sexo masculino com cerca de 1,30 metros de altura e 8 a 10 anos de idade. O miúdo deixou ainda marcas de mão enlameadas, provavelmente de locais onde escorregou, e marcas de fuligem de uma tocha nas paredes. As marcas da tocha talvez sejam um acidente, talvez servissem para marcar o caminho de volta. Na gruta existem também inúmeros vestígios não humanos, na sua grande maioria pegadas e marcas feitas pelas garras de ursos, mas foram encontradas também as marcas das patas de um canídeo solitário, marcas essas que seguem de muito perto o mesmo trajecto do garoto. Ora algumas peculiaridades na forma dos dedos dos meios das patas do canídeo sugerem que se trataria de um cão e não de um lobo. A datação da fuligem deixada pela tocha sugere que tudo isto se passou há 26 mil anos atrás, num passado muito distante. [... ler mais]

Admitindo que o rapaz levou o seu cão numa visita pela gruta, o que os esperava era algo de magnífico. Seis mil anos antes da passagem da criança pela gruta, outros seres humanos tinham deixado nas suas paredes alguns dos mais fantásticos exemplos de arte rupestre que se conhecem. Estas fabulosas cabeças de cavalo são apenas um dos muitos exemplos. Aliás, a qualidade das pinturas levantou alguma polémica quanto à validade da datação das pinturas. A cronologia de radiocarbono indica duas fases de utilização do local por seres humanos. A primeira de 32,500 a 30,000 anos atrás é a que está directamente associada com as pinturas. A segunda incursão de seres humanos terá sido uma breve visita algures entre 27,000 a 26,000 anos atrás, e inclui as marcas de tocha e as pegadas deixadas pelo menino. Embora a idade das figuras se mantenha controversa, pois não se esperaria este nível de sofisticação senão 15 mil anos depois, para já os resultados das várias datações por radiocarbono são consistentes, e sugerem grande antiguidade.

Vinte e seis mil anos atrás um miúdo pegou numa tocha, chamou o seu cão e foi numa fantástica viagem de descoberta num local assombroso. E nós temos as marcas que contam essa história. Talvez seja mesmo só uma história, infelizmente não podemos assegurar que as pegadas do menino e do cão tenham sido feitas na mesma altura. Podem estar separadas por dias, anos, ou mesmo séculos. É que elas nunca se cruzam. Se tivéssemos locais onde o rapaz pisasse parte das pegadas do cão, e outros onde o inverso se passasse, isso indicaria que se tratava de um passeio a dois. Seria contudo um passeio de todo inesperado pois teria ocorrido 12 mil anos antes da data em que se julgava ter ocorrido a domesticação do melhor amigo do homem. E daí talvez não, é que um trabalho recente sugere que cães e homens andarão juntos há muito mais tempo do que se pensava. Mas isso fica para outra contribuição.

Ficha técnica
Imagens retiradas destas páginas do Ministério Francês da cultura.

Referências
Return to Chauvet Cave: Excavating the Birthplace of Art: the First Full Report, by Jean Clottes, 2003. London: Thames & Hudson Ltd.

1 comentários:

João Carlos disse...

Pois eu gosto mais da idéia de que o pequeno e seu cão estavam a fazer um passeio em um ponto turístico. Uma espécie de "visita ao museu"...