segunda-feira, outubro 20, 2008

Os jericos dos faraós

Esta é uma gravura do Egipto Antigo, de cerca de 1300 AC, e mostra uma cena bucólica que sobreviveria com poucas modificações durante os milénios a seguir. Os ceifeiros e os burros são algo que recordo ainda da minha infância, mas há muito desapareceram da paisagem rural portuguesa. Hoje em dia é um pouco difícil imaginar o impacto que a domesticação do Equus asinus teve na história humana. Dados genéticos mostram que os burros terão sido domesticados, há cerca de seis mil anos, a partir de asnos selvagens africanos, provavelmente na região do Egipto Antigo. Ora arqueólogos que escavavam túmulos dos primeiros faraós, na região de Abidos, a cerca de 500 km da cidade do Cairo, ficaram surpreendidos quando, nalgumas das sepulturas que indicavam estatuto mais elevado, encontraram não restos de nobres egípcios, mas sim esqueletos de burros enterrados há cerca de 5 mil anos. Nos ossos desses animais encontram-se pistas que mostram que os animais eram bestas de carga, provavelmente um grupo de animais responsável pelo abastecimento das residências do faraó. E pode não ter sido um faraó qualquer. Não há uma identificação exacta mas pode ter-se tratado de Narmer, que juntou o Alto e o Baixo Egipto num único estado unificado. O transporte de mercadorias nas costas dos burros, e não dos humanos, pode ter sido um dos factores a permitir essa unificação. [... ler mais]

O artigo que descreve os jericos dos faraós é da autoria de Stine Rossel e colegas e foi publicado na revista Proceedings of the Natural Academy of Sciences (ref1). Numa tradução livre do resumo:

A domesticação do burro a partir do asno selvagem africano transformou os sistemas de transporte antigos em África e na Ásia e a organização das primeiras cidades e sociedades de pastoralistas. A pesquisa genética sugere uma origem africana para o burro, mas apontar com exactidão o tempo e local da domesticação tem sido um desafio porque os burros são pouco comuns no registo arqueológico e indicadores das fases iniciais de domesticação são difíceis de determinar. Apresentamos evidência não descrita previamente do mais antigo uso do burro como meio de transporte e novos indicadores paleopatológicos das fases iniciais da domesticação do burro. As descobertas são baseadas em dados de 10 esqueletos de jumentos com aproximadamente 5,000 anos de um antigo complexo mortuário faraónico em Abidos, no Egipto Médio, e um estudo complementar de 53 esqueletos de burros modernos e asnos selvagens africanos.

Abidos é o local onde foram enterrados os primeiros reis do Egipto. Na primeira dinastia, quer os túmulos reais quer os locais de culto das vizinhanças, encontravam-se rodeados de túmulos subsidiários, provavelmente de funcionários e nobres de elevado estatuto. Nem todos esses túmulos continham restos humanos. Alguns continham esqueletos de leões, simbolizando o poder da realeza. Num dos casos as campas continham vestígios de 14 grandes barcos de madeira. Tudo indica que estas sepulturas adicionais se destinavam a assegurar que o rei poderia dispor do seu conteúdo no além. Os jumentos foram encontrados nesse tipo de túmulos subsidiários, e embora os selos sejam característicos dos primeiros soberanos do Período Dinástico, não continham o nome do rei. É, contudo, possível que sejam do tempo dos primeiros reis tais como Narmer e Aha.

Todos os animais foram colocados paralelamente uns aos outros e olhando para sudeste. Os túmulos continham apenas os burros e nenhuns restos humanos ou quaisquer bens mortuários. Os esqueletos estavam quase completos, embora faltassem cinco crânios, uma indicação de que ladrões de túmulos poderão ter passado por ali e testado o conteúdo. Agarrados aos ossos havia vestígios dos tecidos e pêlos dos animais. Eis aqui uma foto dos jericos ainda nos seus túmulos de tijolos de lama:

A comparação com os esqueletos dos asnos selvagens e de burros domésticos mostrou que os animais de abidos eram de estatura semelhante aos parentes selvagens dos burros, em geral maiores que os burros domésticos. Os outros detalhes do esqueleto não mostravam ainda as características típicas dos burros.
Os estudos morfométricos mostram que os metacarpos de Abidos eram semelhantes nas proporções gerais aos do asno selvagem, mas as medições individuais variavam.

Temos portanto esqueletos de burros associados com os seres humanos, mas cujos esqueletos eram essencialmente iguais aos dos animaiss selvagens. Como saber então se eram ou não animais domésticos? O segredo estava nas vértebras, tais como as da imagem abaixo.

Carregar fardos com 20 a 30% do peso corporal no lombo deixa marcas no esqueleto dos animais:
Apesar disso, todos os esqueletos de Abidos mostram uma variedade de ostopatologias consistentes com o transporte de cargas. A semelhança morfológica com os asnos selvagens mostra que, apesar do seu uso como bestas de carga, os burros estavam ainda a sofrer considerável mudança fenotípica durante os primeiros perídodos Dinásticos no Egipto. Este padrão é consistente com estudos recentes de outros animais domésticos que sugerem que o processo de domesticação é mais lento e menos linear do que se pensava previamente.

Cerca de mil anos após o início do processo de domesticação os burros eram ainda muito semelhantes aos seus parentes selvagens. Hoje estão em processo de extinção acelerada em certas regiões do mundo. Em Portugal quase desapareceram. Na Índia vi ainda muitos burros vivendo na periferia das cidades, em particular em Coimbatore, mas já não utilizados como animais de carga, foram substituídos pelos veículos motorizados de 3 rodas.

Ficha técnica
Foto da ilustração do Antigo Egipto cortesia do Yorck Project via Wikimedia Commons.

Referências
(ref1) Stine Rossel, Fiona Marshall, Joris Peters, Tom Pilgram, Matthew D. Adams, and David O'Connor (2008). Domestication of the donkey: Timing, processes, and indicators. PNAS. 10.1073/pnas.0709692105.

1 comentários:

Andrea Daher disse...

Excelente seu blog. Estou usando com meus alunos.Muito interessante.