quarta-feira, outubro 15, 2008

O semnopiteco que afinal era um traquipiteco mas que tudo indica volte a ser um semnopiteco

Esta imagem é uma das inúmeras fotografias de langures pretos das Nilgiris que tirei na minha viagem à Índia, em Março deste ano. Ora os leitores que tenham recorrido à Wikipedia para obter informações sobre o animal terão sido enviados à página de uma espécie designada Trachypithecus johnii e não ao Semnopithecus johnii que eu uso aqui. O que sucede é que na literatura científica ainda perdura alguma confusão quanto à nomenclatura destes animais. Os langures pertencem ao ramo asiático da família de macacos do velho mundo que se designa por Colobinae. Os colobinos são um grupo razoavelmente diverso que inclui dezenas de espécies repartidas por 10 géneros. Há uma separação clara entre os géneros africanos e os asiáticos, e entre os asiáticos existem dois subgrupos, um formado pelos langures e outro pelos chamados macacos de nariz-esquisito (tradução literal do inglês, se alguém souber um termo português mais adequado por favor contacte-me). Os langures foram inicialmente colocados num único género, Presbytis ou Semnopithecus, mas diferenças na morfologia craniana levaram os investigadores modernos a reparti-los em três géneros: Semnopithecus, Trachypithecus e Presbytis. O langur preto das Nilgiris foi incluído nos Trachypithecus, baseado em semelhanças morfológicas. Só que quando se vai mais fundo, e se analisam os genes, descobre-se que isso possivelmente se deve a efeitos de convergência ecológica. Parece que afinal eu estava certo em manter a designação de Semnopithecus johnii.[... ler mais]

Na biologia moderna, esclarecer as questões de nomenclatura não é tão arbitrário como parece. A classificação deve reflectir as relações de parentesco, pelo que espécies no género Trachypithecus devem partilhar entre elas um antepassado comum mais recente do que qualquer delas partilha com o género Semnopithecus. Admitia-se modernamente que o género Semnopithecus possuía apenas uma espécie, S. entellus, uma criatura semi-terrícola que vive em florestas de árvores de folha caduca. Assumia-se por outro lado que o género Trachypithecus possuía um grande número de espécies, nativas de florestas húmidas de folha perene. Na verdade, em vez de espécies é melhor falar em agrupamentos de espécies, pois existem variantes regionais e o número de espécies de traquipitecos pode ultrapassar a dezena. Estes agrupamentos de espécies eram designados por T. [cristatus], T. [obscurus], T. [francoisi], T. [pileatus], e T. [vetulus]. Neste último agrupamento estão incluídas duas espécies, o T. vetulus e o T. johnii (o langur preto das Nilgiris).

O artigo que esclarece as relações entre semnopitecos, traquipitecos e presbitíos é da autoria de Martin Osterholz, Lutz Walter, e Christian Roos, e foi publicado na revista BMC Evolutionary Biology (ref1) . Na motivação para o trabalho os autores referem:

A história evolucionária dos colobinos asiáticos é mal compreendida. Embora a monofilia dos macacos de nariz esquisito tenha sido confirmada recentemente, as relações entre os géneros de langures Semnopithecus e Trachypithecus e a sua relação com os colobinos asiáticos permace pouco clara. Para além disso, reconhecem-se vários grupos de espécies no Trachypithecus mas as suas filiações ainda são motivo de disputa. Para responder a estas questões, dados de sequências mitocondriais e do cromossoma Y foram filogeneticamente relacionados e combinados com a presença/ausência de integração de retroposões.

Aqui convém esclarecer o que é essa coisa da parafilia e monofilia, conceitos centrais na classificação biológica moderna. Para os esclarecer, nada melhor que um exemplo: consideremos as formas de agrupar o homem moderno, o homem de neandertal, e os chimpanzés. Poderíamos pensar em agrupá-los consoante as espécies que ainda sobrevivem hojem em dia, isto é, homem moderno + chimpanzés, versus homem de neandertal. Só que, como todos sabemos, isto não traduz as afinidades biológicas, os homens de neandertal estão mais próximos de nós do ponto de vista evolutivo (filogenético) que dos chimpanzés. Isso significa que esse agrupamento de espécies não reflecte as relações de parentesco, e é designado por parafilético. Por outro lado, uma classificação em que se tenha homem moderno + homem de neandertal, versus chimpanzés respeita as relações evolutivas, e é designada por monofilética.

A separação das espécies em géneros é de certa forma artificial, mas uma vez feita deve reproduzir as relações filogenéticas entre as espécies, isto é, deve ser monofilética. O preço a pagar é uma certa instabilidade no nome das espécies, pois esses nomes incluem a designação do género e aí aplicam-se regras de antiguidade na publicação do nome. Com o advento das análises genéticas as coisas têm ficado mais fáceis, pelo menos no que se refere a espécies não extintas. Martin Osterholz e colegas conseguiram alguma clarificação no que se refere aos vários géneros de langures, mas permanecem algumas incertezas. Como resultados os autores referem:
O fragmento de 5 kb do genoma mitocondrial analisado não permite a resolução das relações filogenéticas entre os géneros de langures, mas detectaram-se cinco integrações de retroposões que ligam o Trachypithecus e o Semnopithecus. De acordo com os dados do cromossoma Y e de um fragmento de 573 pares de bases do gene do citocroma b mitocondrial, é suportada uma origem comum e monofilia recíproca do grupo de espécies T. [cristatus], T. [obscurus] e T. [francoisi], que também é apoiada por uma inserção ortóloga de retroposão.

Estas inserções de retroposões são fragmentos repetitivos de ADN que têm grande valor informativo, e que não é necessário discutir aqui em detalhe (outra forma de dizer que não percebo grande coisa do assunto). Ora sobram dois dos agrupamentos de espécies colocadas nos traquipitecos. O que sucede aos outros, em particular ao T. [vetulus], onde se inclui o nosso langur preto?
O T. [vetulus] agrupa-se dentro Semnopithecus, algo que é confirmado por duas integrações de retroposões. Para além disso, este grupo de espécies é parafilético, com o T. vetulus formando um clado com o S. entellus do Sri Lanka e o T. johnii com a forma do Sul da Índia do S. entellus. Detectaram-se incongruências nas árvores genéticas para o T. [pileatus], visto que os dados do cromossoma Y ligam-no com T. [cristatus], T. [obscurus] e T. [francoisi], enquanto os dados mitocondriais filiam-no com o clado do Semnopithecus.

O ênfase a negrito é meu. Os autores concluem então.
Nenhuma das relações entre os três géneros de langures nem as suas posições entre os colobinos asiáticos pode ser esclarecida com os 5kb de dados de sequências mitocondriais, mas as integrações de retroposões confirmam pelo menos uma origem comum de Semnopithecus e Trachypithecus. De acordo com as sequências de dados do cromossoma Y e de 573 pares de bases mitocondriais, T. [cristatus], T. [obscurus] e T. [francoisi] representam verdadeiros membros do género Trachypithecus, enquanto T. [vetulus] se agrega dentro do Semnopithecus. Devido à parafilia do T. [vetulus] e à polifilia do Semnopithecus, parece apropriada a divisão do género em três grupos de espécies (S. entellus - Norte da Índia, S. entellus - Sul Índia + T. johnii, S. entellus - Sri Lanka + T. vetulus). O T. [pileatus] coloca-se numa posição intermédia entre ambos os géneros, indicando que o grupo de espécies pode ser o resultado de uma hibridização ancestral.

Ou seja, parece claro que o langur preto das Nilgiris é um semnopiteco, e que esse género passou de uma única espécie para uma mão cheia delas. Sendo assim, vou deixar as legendas das figuras tal como estavam. Claro que os langures que eu fotografei não querem saber disto para nada, estão mais interessados em comer folhas:

Ao incluir esta fotografia notei algo que me tinha escapado no campo. Este animal tem uma cauda estranhamente curta para langur (comparem com a do animal na imagem no início da contribuição). Tenho que ver se o identifico nalguma das outras fotografias que tirei.

Ficha técnica
Imagens adaptadas de fotografias tiradas por mim, podem ser usadas livremente.

Referências
(ref1) Martin Osterholz, Lutz Walter, and Christian Roos (2008). Phylogenetic position of the langur genera Semnopithecus and Trachypithecus among Asian colobines, and genus affiliations of their species groups. BMC Evolutionary Biology, vol 8 pg 58. doi: 10.1186/1471-2148-8-58.

1 comentários:

João Carlos disse...

Caio, dá uma consulta rápida à página Colobinae da WikiPedia (em inglês)... Lá está, com todas as letras, bem ao cabo do texto, que os langures Cinzentos (Semnopithecus sp) e os langures de Nilgris (Trachypithecus johnii) são useiros e vezeiros em produzir híbridos...