segunda-feira, outubro 30, 2006

O diabo também tem anjos da guarda

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A senhora que aparece a segurar este Sarcophilus harrisii, mais conhecido como diabo da Tasmânia, é a doutora Menna Jones, que faz parte da lista de autores do artigo sobre a gestão da doença do tumor facial do diabo que discuti na contribuição anterior desta série. O animal, assim chamado devido ao seu mau feitio, desperta, apesar do nome, alguma simpatia. Neste filme, um diabo, depois de um grunhido com o seu quê de mal humorado, dedica-se à sua higiene pessoal de um modo que tem o seu quê de encantador. O filme é cortesia do Departamento da Indústrias Primárias, Água e Ambiente da Tasmânia, que desenvolve aquilo a que chama o Programa da Doença do Tumor Facial do Diabo. Em Março de 2006, esse Programa lançou uma publicação em que descreve a situação e as várias medidas em curso ou projectadas para o futuro próximo. [... ler mais]

A publicação começa por descrever o que sabia à época sobre a doença. Numa tradução livre:
A doença do tumor facial do diabo (DTFD) é uma condição fatal nos diabos da Tasmânia, caracterizada por cancros (canceres) em torno da boca e da cabeça. Os cancros começam como pequenas lesões ou altos em torno da boca. Estes rapidamente se desenvolvem em grandes tumores na face e pescoço (e algumas vezes noutras partes do corpo). Diabos com tumores faciais têm dificuldade em comer. Morrem habitualmente 3 a 8 meses após os primeiros sinais das lesões -- em resultado da fome e da cessação de funções corporais.

Desta vez resolvi não colocar imagens de diabos doentes. Impressionam demasiado. A publicação trata sobretudo do que se está a fazer para mitigar a situação. Uma parte importante dos esforços é o mapeamento da doença, para identificar as áreas afectadas. Os cientistas instalaram estações onde capturam e monitorizam os animais. Não resisto a mostrar outro filme, desta vez da captura de um diabo.


As zonas do noroeste e oeste da Tasmânia parecem ainda estar livres de contágio. Apesar de a doença afectar diabos em mais de metade da ilha, os efeitos são mais notórios nas zonas onde os diabos são mais numerosos, e sobretudo nos locais onde a doença se manifestou primeiro. Nesses locais o número de diabos caiu qualquer coisa como 80% desde que se registaram as primeiras infecções. Como eu indiquei nas contribuições anteriores, os cientistas têm avançado bastante na compreensão da doença e dos mecanismos da sua transmissão. O trabalho de Anne-Maree Pearse e Kate Swift (2006) mostrou que a doença tinha todas as características de um transplante de tecido canceroso entre animais como consequência das mordidas, bastante comuns sobretudo na época de acasalamento. Um dos problemas que os cientistas enfrentam neste momento tem a ver com a inexistência de um teste que permita saber se um animal está ou não infectado pela doença antes do aparecimento das lesões cutâneas.

Embora ainda haja muito que aprender sobre a doença, as autoridades da Tasmânia iniciaram já actividades de gestão. Numa parte da ilha, a Península de Tasman, com uma ligação estreita ao resto da ilha, começaram a estudar os efeitos da remoção dos animais doentes na estrutura da população de diabos. Para já verificou-se que a prevalência da doença neste península é reduzida e a distribuição etária dos animais não tem sido afectada.

Aqui incluo mais uma citação, para responder a uma preocupação evidenciada pelo João Carlos do Chi vó, non pó, num comentário a uma contribuição anterior. Ele interrogava-se até que ponto tudo isto não poderia ser obra dos seres humanos, que estariam interessados em livrar-se de uma criatura incómoda. Citando a Doutora Menna Jones sobre o trabalho na península:
A responsável de gestão da vida selvagem do Projecto DTFD, a doutora Menna Jones, disse que a comunidade local e os operadores turísticos merecem reconhecimento pelo seu apoio. "Proprietários de terras locais deram-nos acesso aos seus terrenos para executarmos o nosso programa de captura," disse ela. "De forma semelhante, um dos parques de vida selvagem desempenhou um papel importante nos nossos programas de pesquisa, suportando os custos, para nos auxiliar a tornar este teste num sucesso".

O ênfase é meu, apenas para salientar o facto de que o diabo tem interesso turístico, é o animal emblemático da Tasmânia, que não existe no continente.

Uma estratégia que os investigadores têm utilizado como alternativa às armadilhas são os dispositivos fotográficos automáticos, que permitem monitorizar os diabos em regiões de difícil acesso, e também em zonas onde a densidade de diabos é relativamente baixa. O dispositivo utilizado é bastante simples: um isco, que pode ser alimento ou um odor, um par de máquinas fotográficas digitais, e um mecanismo de disparo accionado por um sistema de infravermelhos. A qualidade das imagens, como a que se mostra aqui ao lado, é bastante boa. A partir de marcas na pelagem e cicatrizes é mesmo possível ao pessoal no terreno identificar os diferentes animais. Não resisto a colocar em baixo mais uma imagem obtida por estes dispositivos automáticos. Imagens destes bicharocos nunca são demais.

Um dos aspectos que têm preocupado os cientistas é a gestão de populações em cativeiro. Estas populações funcionam como uma espécie de seguro, e uma precaução, caso não seja possível controlar a doença nas populações em liberdade. Alguns indivíduos jovens foram retirados de populações sem sinais de doença, e transferidas para zoológicos e parques no continente, onde existem programas de reprodução em cativeiro. Estas populações poderão vir a ser uma reservas de diversidade genética importantes para o futuro da espécie, em particular se forem necessários programas de repovoamento. Até agora não houve casos de doença nos animais mantidos em cativeiro, e num dos parques estão a ser observados orfãos, cujas morreram da doença, para perceber se a doença é transmitida da mãe para as crias.

Espero que o diabo não passe a existir apenas nos zoológicos. Trata-se de um sobrevivente nato. A situação de perigo de extinção que os diabos enfrentam não é nova. Os colonos europeus, quando se instalaram na Tasmânia, encararam o diabo como um animal nocivo, pilha-galinhas, e um perigo para ovelhas e cordeiros. Durante mais de um século, de 1830 a 1941, havia mesmo uma recompensa pelo seu abate, e tornaram-se muito raros. Só em Julho de 1941 passaram a ser protegidos por lei e a população fez uma recuperação notável. Daí que a situação actual do diabo seja tão desconcertante: conseguiu sobreviver a uma perseguição feroz por parte dos seres humanos, apenas para sucumbir a algo que apareceu dentro da própria espécie. Deve notar-se que os colonos europeus poderão não estar isentos de culpas: a propagação do tumor parece ser facilitada pela pouca diversidade genética dos diabos, e isso pode ser devido à actuação dos seres humanos.

Ficha técnica
O PDF do folheto que serviu de inspiração a esta contribuição, e de onde foram retiradas as imagens, pode ser encontrado nas páginas do DPIWE.

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