domingo, outubro 01, 2006

O cordeiro com pele de lobo

Entre a literatura de anos anteriores, que se encontrava no meu local de férias habitual, encontrei um artigo publicado a 11 de Novembro de 1924, que descreve aquele que é o maior mamífero predador conhecido, o Andrewsarchus mongoliensis. Para aqueles que se interrogam sobre que idade terei, e se terei lido o tal artigo quando saiu, não, isso não aconteceu. Na verdade, embora tenha já um número apreciável de cabelos brancos, ainda não era nascido quando foi publicado. O animalzinho em questão, que viveu há cerca de 32 milhões de anos, era o dono do crânio que se mostra na figura, e na verdade pouco mais se conhece dele. Pode não parecer nada de especial, mas quando se refere o tamanho a coisa muda de figura: 834 milímetros de comprimento, apenas um pouco menos de metade da altura média de um homem adulto. [... ler mais]

A descoberta é descrita por Henry Fairfield Osborn na revista American Museum Novitates (ref1). O texto tem um certo sabor "histórico", por isso vou fazer uma citação bastante extensa. Numa tradução livre da introdução:

O nome e descrição deste carnívoro omnívoro gigantesco, do Eocénico Superior da formação de Irdin Manha na Mongólia, são dedicados ao líder da Terceira Expedição Asiática, o senhor Roy Chapman Andrews. Quando primeiro descoberto pelo senhor George Olsen, foi declarado pelo senhor Andrews como um carnívoro, uma suposição que se mostrou ser correcta.

Roy Chapman Andrews é um personagem de certa forma mítico e atribuir o nome a um animal tão possante é um bom tributo. O artigo prossegue com:
Posteriormente, o seu tamanho avantajado levou à suposição de que seria um membro da família de porcos gigantes representada pelo Entelodon na Europa e pelos Entelodontidae na América do Norte, - porcos omnívoros gigantes com crânios alongados; de facto, as proporções cranianas e faciais do Andrewsarchus são muitíssimo semelhantes às do Entelodon do Oligocene e do Dinohyus do Miocénico Inferior da América do Norte, sem dúvida devido a hábitos omnívoros semelhantes.

Uma visão artística de um entelodonte pode ser encontrada na imagem de marca que surge no alto de todas as páginas do blog de Carl Buel, o Olduvai George. O Entelodonte, que não é realmente um porco, tinha um crânio com mais de um metro de comprimento, e a sua dieta incluiria sobretudo plantas mas seria muito seguramente um necrófago oportunista e predador de pequenos animais. Rapidamente se verificou que o Andrewsarchus não era um entelodonte:
Um rascunho dos contornos do crânio foi enviado numa carta ao Museu, a partir do qual o Doutor W. D. Matthew notou imediatamente a sua verdadeira afinidade como os primitivos creodontes da família Mesonychidae. Quando o exemplar chegou ao laboratório, foi comparado com o gigante Mesonyx (Harpagolestes) uintensis do Eocénico Superior do Wyoming.

A maioria dos mamíferos predadores a ques estamos habituados, como doninhas, lobos, ursos, hienas, felinos e pinípedes, pertencem a um grupo de animais chamados Carnivora. No início do século passado os creodontes eram um grupo que incluia practicamente todos os mamíferos placentários com habitos predatórios que não tivssem descendentes modernos. Esse não era um grupo natural, pois as relações de parentesco entre esses animais eram muitas vezes algo longínquas. Sabe-se hoje que muitos dos animais incluídos nos creodontes na altura em que o artigo Henry Osborn foi escrito estão de facto relacionados de mais perto com animais doutros grupos. Esse animais foram retirados dos creodontes, tendo os Creodonta sido redefinido como o "grupo-irmão" dos Carnivora. Os Carnivora e os Creodonta correspondem a dois ramos de mamíferos que possuem um antepassado comum mais recente entre eles do que com o resto dos mamíferos.

Nos últimos anos, com inúmeras novas descobertas, e a descrição de muitos fósseis guardados nas colecções dos museus, embora ainda haja muitas incertezas na filogenia dos mamíferos, sabe-se que os mesoniquídeos. que têm um registo fóssil bastante razoável, não são nem membros dos Carnivora nem dos Creodonta. Os mesoniquídeos, apesar de predadores, têm como parentes vivos mais próximos os artiodáctilos (um grupo que inclui entre outros ovelhas, camelos e hipopótamos) e os cetáceos. Daí o título desta contribuição: os mesoniquídeos eram parentes mais próximos dos cordeiros que dos lobos. Os mesoniquídeos são um exemplo interessante de evolução convergente com os canídeos se bem que com algumas peculiaridades. Possuíam uma forma vagamente canina, mas em vez de garras tinham um conjunto de pequenos cascos na ponta dos dedos. Uma reconstrução de um destes animais, do género Pachyaena, pode ser vista nesta página de Carl Buel, é a terceira figura do artigo. Trata-se de uma espécie bastante menor que o Andrewsarchus mongoliensis, mas o aspecto devia ser razoavelmente parecido.

Para perceber que o Andrewsarchus era mesmo grande basta ver o tamanho relativo do seu crânio comparativamente ao de outros carnívoros: três vezes maior que o do lobo e que o do seu parente próximo Mesonyx, e cerca de duas vezes maior que o do urso pardo.

Mas exactamente quão grande era o Andrewsarchus? O problema é que só possuímos um crânio, logo temos que nos basear em estimativas obtidas a partir de parentes próximos para calcular as dimensões do resto do corpo. É isso que Henry Osborn faz para estimar o tamanho do animal:
Comprimento do corpo: tal como o comprimento do crânio de Mesonyx obtusidens (279 mm.) está para o comprimento total do corpo (1278 mm.), também está o comprimento do crânio do Andrewsarchus (834 mm.) para o seu comprimento total do corpo, nomeadamente 3820 mm.

Quase quatro metros de comprimento! Deve notar-se que o comprimento não inclui a cauda.
Altura do corpo: tal como o comprimento do crânio de M. obtusidens (279 mm.) está para a altura das vértebras (576 mm.), também o comprimento do crânio do Andrewsarchus (834 mm.) está para a altura das vértebras, nomeadamente 1890 mm.

Quase dois metros de altura no garrote!
Se o Andrewsarchus mongoliensis fosse proporcionado da mesma forma que o Mesonyx obtusidens, teria um comprimento do focinho até à extremidade do pélvis de 3 metros e 82 centímetros, e uma altura do chão ao garrote ou meio das costas de 1 metro e 89 centímetros. Assim, em números redondos, seria três vezes o tamanho do Dromocyon vorax do Mesonyx obtusidens do Eocénico Médio do Wyoming, formação de Bridger.

Quanto ao peso, Henry Osborn não avança estimativas. Mas não resisto a fazer uma estimativa pessoal baseada em animais vivos. Uma estimativa rápida e pouco precisa pode ser feita usando o factor de 3 no tamanho em relação aos lobos, a que deverá corresponder qualquer coisa como um factor de 27 no volume. Um lobo médio pesa menos de 60 kg, logo admitindo uma constituição semelhante o Andrewsarchus andaria por volta dos 1,600 kg. Esta forma de escalar os valores é um pouco simplista, mas, apesar disso, os valores que tenho visto na literatura, que usam aproximações mais adequadas, sugerem um animal apenas ligeiramente mais leve, com as estimativas variando entre os 900 e os 1,500 kg. Deve notar-se que temos apenas um exemplar, que não seria necessariamente o animal mais avantajado da espécie. De qualquer forma tudo sugere que existiu um mamífero predador pesando mais de uma tonelada e com uma bocarra com mais de 80 cm. Seria uma visão realmente assustadora.

Hoje em dia encara-se o Andrewsarchus como um predador possante, e não como um omnívoro. Uma visão artística de um Andrewsarchus mastigando um brontotério, enquanto uns creodontes do género Sarkastodon esperam pela sua vez, pode ser vista nesta página do artista John Sibbick.

Referências
(ref1) Henry Fairfield Osborn (1924). ANDREWSARCHUS, GIANT MESONYCHID OF MONGOLIA. American Museum Novitates, 146. PDF

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