quarta-feira, outubro 04, 2006

Apunhalar com preguiça

Falei aqui recentemente daquele que teria sido o maior mamífero predador a caminhar sobre terra firme, com um peso que rondaria uma tonelada. Só que esse não era o único artigo sobre mega-carnívoros que encontrei entre a minha antiga literatura de férias. Alguns autores propuseram que o dono deste braço, o Megatherium americanum, seria também um predador. Este seria o cotovelo de um assassino. Ora o que é que isto tem de surpreendente? Bem, para já o megatério pesaria qualquer coisa como quatro toneladas, logo destronaria o Andrewsarchus por uma larga margem. Por outro lado, este braço pertence a nada mais nada menos que a uma preguiça gigante. [... ler mais]

Embora o artigo se mantenha algo controverso, devo confessar que, depois de falar de preguiças marinhas, nada me parece estranho nestes animais. Eis aqui uma versão de corpo inteiro deste alegado assassino.


O artigo é da autoria de dois cientistas uruguaios, R. Fariña e R. Blanco, e foi publicado na revista Proceedings of the Royal Society of London B (ref1). Numa tradução livre do resumo:

O ponto de vista tradicional de que as preguiças terrícolas (Xenarthra) seriam um grupo relativamente uniforme e pouco diversificado do ponto de vista ecológico, foi desafiado recentemente. Hábitos marinhos foram atribuídos à Thalassocnus natans do Pliocénico do Peru. Além disso, uma dieta mais diversificada foi proposta por um de nós (R.A.F.) para alguns géneros de preguiças sul-americanas do Lujaniano (Pleistocénico tardio, Holoceno inicial). Neste artigo testa-se um aspecto da última hipótese, ou seja, que o Megatherium americanum tinha características morfológicas que se explicam melhor tendo hábitos carnívoros do que tendo uma dieta puramente herbívora. Abordamos, especificamente, a questão dos seus antebraços serem construídos por forma a optimizarem a velocidade em vez da força de extensão. Um tal traço poderia ter estado associado com um uso potencialmente agressivo das grandes garras do animal, enquanto uma extensão forte seria mais adequada para arrancar ramos. Por outro lado, a grande vantagem mecânica dos biceps poderia ter permitido ao animal levantar e carregar grandes pesos. Isto por sua vez sugere a possibilidade de que o animal poderia ter manipulado presas de grande tamanho (por exemplo, virando presas ou carcaças com armaduras dorsais para expor as parte mais desprotegidas) e para guardar grandes porções de comida em locais mais seguros. De acordo com esta visão, o Megatherium americanum seria o maior mamífero caçador terrestre a ter existido.

O que Fariña e Blanco mostram é que o olecrânio (porção do cúbito na vizinhança do cotovelo) dos carnívoros é optimizado para movimentos muito rápidos das antebraços. O megatério tem um olecrânio de carnívoro e os autores defendem que era utilizado pelo megatério para apunhalar outros animais. Os autores chegaram a essa conclusão depois de considerarem várias possibilidades, entre elas a defesa:
Contudo, um mamífero adulto com um peso de 4 toneladas nos adultos não deveria estar particularmente preocupado com a possibilidade de ataque por, digamos um Smilodon dentes de sabre. Como analogia, um homem de 70 kg não deveria ter medo do ataque de um gato de 6 kg, independentemente da ferocidade que ele pudesse ter.

Eu confesso que o argumento não me convence totalmente. Eu teria medo se, em vez de um só bichano de 6 kg, fosse atacado por um bando deles com dentes que fizessem lembrar grandes adagas. Os autores consideram também não existir evidência de outras utilizações, como lutas entre indivíduos da mesma espécie. Daí pensarem que a única alternativa com sentido é o megatério ser carnívoro, embora não ser exactamente um assassino, talvez um oportunista que poderia roubasse as presas ao Smilodon. Contudo notam que o megatério podia adoptar uma postura bípede (ou trípode apoiado na cauda) e tinha membros anteriores muitíssimo fortes, sendo provavelmente capaz de levantar mais de uma tonelada. Isso seria útil para atacar gliptodontes. Estes eram grandes herbívoros couraçados, aparentados ao tatus, dos quais se mostra abaixo um exemplar da espécie Glyptodon asper.

Os gliptodontes mediam cerca de quatro metros de comprimento e um metro e meio de altura, e pesariam por volta de uma tonelada e meia. É realmente uma pena que tenham desaparecido.

Como referi, a proposta de Fariña e Blanco foi acolhida com algum cepticismo. Em grande parte porque a dentição do megatério não é a de um carnívoro. As sínfises mandibular e maxilar do megatério não possuiam dentes, e os seus molares eram achatados. Não encontrei artigos recentes sobre o tema, pelo que a questão ainda estará por resolver, mas há para já uma imagem que não me sai da cabeça. Imaginem um bando de enormes preguiças assassinas a rodearem um pobre gliptodonte, a virarem-no de patas para o ar, e a apunhalarem-no até à morte com as suas enormes garras, furando-lhe a barriga desprotegida. Em seguida, imaginem essas criaturas, essencialmente desdentadas, excepto por um conjunto de molares nada adequados a mastigar carne, a retirarem sua vítima da carapaça pedaço por pedaço e a engolirem-lhe a carne. O mais interessante seriam as perseguições em câmara lenta entre as duas espécies, nenhuma delas realmente adaptada para correr depressa. Não sei, parece-me demasiado bizarro, mas na natureza já houve coisas mais estranhas.

Para aqueles com alguma curiosidade em ver o aspecto dos animais em vida, encontrei estas ilustrações de Heinrich Harder, da primeira metade do século XX, cujos direitos de autor expiraram e logo posso colocar aqui.

Os seres humanos não estão a mais, foram de facto contemporâneos de ambas as criaturas nas Américas. Uma imagem mais dinâmica de um gliptodonte a ser atacado por uma matilha de canídeos pode ser vista nesta página de John Sibbick.

Ficha técnica
Imagem do retirada desta página da Wikimedia Commons, user Ballista.
Imagem do gliptodonte retirada desta página da Wikimedia Commons, user Arent.
A arte de Heinrich Harder pode ser vista nesta página.

Referências
(ref1) Farina RA, Blanco RE. (1996). Megatherium, the stabber. Proc Biol Sci. 1996 Dec 22;263(1377):1725-9. Resumo e PDF

0 comentários: