quarta-feira, setembro 13, 2006

A preguiçar nos fundos oceânicos

Aproveitando o facto de ter conseguido acesso à internet durante as férias, resolvi colocar uma contribuição que tinha de reserva sobre mamíferos marinhos. Pode parecer estranho falar em mamíferos marinhos e colocar uma imagem de um bicho-preguiça, neste caso a variante panamiana da vulgar preguiça de três dedos, de seu nome científico Bradypus variegatus infuscatus, mas há uma boa razão para isso. Embora hoje existam apenas seis espécies de preguiças arborícolas, quatro delas no género Bradypus (preguiças de três dedos), e duas no género Choloepus (preguiças de dois dedos), num passado não muito longíquo existiam inúmeras espécies destes animais a calcorrearem as Américas. Digo calcorrear porque muitas espécies habitavam no solo, e não nas árvores como as preguiças que ainda sobrevivem. As preguiças terrícolas apresentavam-se num sem número de tamanhos, desde o pequeno como as preguiças actuais (menos de um metro, menos de 10 kg) até ao gigantesco, maior que os elefantes actuais. [... ler mais]

Uma dessas preguiças terrícolas era a preguiça de Shasta, do género Nothrotheriops, que pode ser vista aqui, cortesia do blog de Carl Buel. As preguiças de Shasta desapareceram há menos de 11,000 anos e foram contemporâneas do homem nas Américas. Se repararem bem, na imagem em que a Nothrotheriops aparece sozinha, também cortesia de Carl Buel, vemos que se trata de um animal que só poderemos apelidar de estranho. Notem em particular a postura dos pés. Ora, algumas parentes muito próximas da Nothrotheriops, que viviam naquilo que é hoje o Peru, eram ainda mais invulgares: não eram arborícolas, nem terrícolas, eram aquáticas. Essas criaturas pertencem ao género Thalassocnus, e foram descritas pela primeira vez em 1995 num artigo de Christian de Muizon e Gregory McDonald na revista Nature (ref1). Numa tradução livre do resumo:

As preguiças terrícolas (Gravigrada, Xenarthra) conhecem-se desde o Oligocénico médio ou tardio até ao Pleistocénico tardio na América do Sul, e do Miocénico tardio até ao Pleistocénico tardio na América do Norte. São de tamanho médio a gigantesco e possuem hábitos terrestres. A descoberta de restos abundantes e bem preservados de uma nova preguiça (Thalassocnus natans), em depósitos marinhos do Pliocénico do Peru expandiu drasticamente o nosso conhecimento do alcance de adaptação da ordem. A abundância de indivíduos, a ausência de outros mamíferos terrestres na rica fauna marinha do local, e o facto de a costa peruana ser um deserto durante o Pliocénico sugerem que vivia na costa e que entrou na água provavelmente para se alimentar de ervas ou algas marinhas.

Os vertebrados encontrados com as T. natans, no que seria uma baía de águas pouco profundas, incluem focas, golfinhos, pinguins e crocodilos. Isso, aliado ao facto de não existirem plantas para comer em terra, sugerem que a T. natans seria um animal de hábitos anfíbios. Algo que se via também na forma do esqueleto:
A morfologia da premaxila, fémur, e vértebras caudais (semelhantes às das lontras e castores) e as proporções dos membros estão de acordo com esta interpretação.

O animal era mais ou menos do tamanho de um urso pardo. Os primeiros fósseis tinham sido descobertos em 1977, e tinha causado alguma surpresa na época que um animal terrestre fosse bastante mais abundante que os animais marinhos, naquele tipo de ambiente. O esqueleto é uma das evidências mais fortes de hábitos aquáticos, sobretudo no que se refere aos membros posteriores, que apresentam uma tíbia com uma dimensão semelhante à do fémur. Nas preguiças terrícolas as tíbias são muito menores que o fémur. Esse tipo de proporções é comum em animais aquáticos que nadam com movimentos vigorosos dos membros posteriores. A cauda apresentava também modificações que sugerem que seria capaz de movimentos para baixo e para cima. O crânio por seu lado mostrava evidências de um focinho semelhante aos dos sirénios (dugongos, manatins e vacas-marinhas). Os membros anteriores são no entanto ainda típicos das preguiças, incuindo as grandes garras (que também existiam nos posteriores). Seria uma criatura estranha, com cabeça de manatim, braços de preguiça, pernas e cauda de lontra.

Os próprios autores do estudo ficaram pasmados com o achado. No comunicado de imprensa que acompanhou esta descoberta, refere-se:
"Eu fiquei totalmente surpreendido", disse McDonald sobre a descoberta. "Temos dito na brincadeira que a nossa próxima viagem será para descobrir a preguiça voadora".

Investigações posteriores, descobriram um total de 5 espécies diferentes de preguiças marinhas, com idades diferentes, entre 7 a 8 milhões de anos atrás, 6 milhões de anos atrás, 5 milhões de anos atrás, 3 a 4 milhões de anos atrás, e finalmente 1.5 milhões de anos atrás. Estes animais formam uma espectacular sequência evolutiva que ilustra a adaptação de um animal terrestre ao meio aquático. As espécies são descritas num artigo um pouco mais recente, de 2004, da autoria de Christian de Muizon e colegas publicado no Journal of Vertebrate Paleontology (ref2). Numa tradução livre do resumo:
A preguiça aquática Thalassocnus encontra-se representada por cinco espécies que viveram ao longo da costa do Peru do Miocénico tardio até ao Pliocénico tardio. Uma comparação detalhada da anatomia craniana e mandibular destas espécies mostra adaptações alimentares diferentes. As três espécies mais antigas de (T. antiquus, T. natans, and T. littoralis) tinham provavelmente um pastar parcial (comedores intermediários ou mistos) e a componente transversa do movimento mandibular era diminuta, ou mesmo inexistente. Alimentavam-se provavelmente de forma parcial de algas ou ervas marinhas que davam à costa, ou em águas pouco profundas (menos de 1m) como indicado pelas estrias abundantes dos seus dentes molares, criadas pela ingestão de areia. As duas espécies mais jovens, (T. carolomartini e T. yaucensis) tinham um pastar mais especializado que as três espécies mais antigas e possuíam uma componente transversa no seu movimento mandibular. Os seu dentes eram quase totalmente desprovidos de estrias. Estas duas espécies alimentavam-se provavelmente de forma exclusiva a profundidades maiores que as espécies mais antigas.

Trata-se de um artigo que lida sobretudo com os crânios. A dentição passa de um tipo de dentes destinados a arrancar folhagem para dentes adaptados a animais que pastam (a tal questão da componente transversa do movimento mandibular). As marcas de areia nos dentes mostram uma sequência de animais que se alimentariam, na forma mais antiga, de algas que davam à costa, nas formas seguintes de algas dentro de água mas a pouca profundidade. A ausência dessas marcas nos animais mais recentes significa que mergulhavam e se alimentavam nos leitos de algas a profundidades relativamente elevadas. As mandíbulas destes animais "esticam" ao longo do tempo, ficando os dentes cada vez mais longe da extremidade da boca, numa convergência notável com os sirénios. Face à evidência de um rico suprimento de vasos sanguíneos nessa região, é de admitir que o focinho seria bastante largo e carnudo. Os ossos do palato evoluiram também por forma a permitir que nas formas mais recentes haja uma separação eficiente entre as vias respiratórias e digestivas, algo necessário para animais que se alimentam debaixo de água.

Esta é uma das melhores sequências evolutivas que já vi. No final do artigo há alguns comentários interessantes sobre o resto do esqueleto. Uma das coisas que me surpreendeu é que as Thalassocnus possuem garras ainda maiores que os as preguiças terrícolas, que fariam inveja ao Freddy Krueger do Pesadelo em Elm Street. Os autores sugerem que as preguiças utilizariam essas garras sobretudo para recolher alimento, mas eu acho mais interessante uma outra possibilidade que eles avançam, que as garras serviriam para o animal se segurar às rochas do fundo marinho. Isso seria necessário pois as preguiças marinhas não possuem os ossos espessos e pesados dos sirénios, que os mantêm no fundo. Nisto as Thalassocnus fariam lembrar as iguanas marinhas das Galápagos. Este artigo, e um outro no mesmo volume, que não vou descrever aqui, dão uma ideia muito razoável do aspecto que estes animais teriam em vida. As formas mais recentes estavam no caminho para um animal marinho verdadeiramente peculiar.

Não deixa de ser fascinante observar as várias estratégias que os animais terrestres desenvolveram na sua evolução para formas aquáticas, bem como o número de vezes que essa transição ocorreu, e o tipo de adaptações com carácter único que surgiram. Os animais evoluem com aquilo que têm "à mão", e não deixa de ser interessante que as preguiças mesmo no mar conservem as suas garras. É realmente pena que tenham desaparecido há um milhão e meio de anos atrás. Infelizmente, não terão conseguido espalhar-se suficientemente para sobreviverem a uma catástrofe natural local ou mudança climática mais dramática. Nisto não são diferentes das baleias, por exemplo, que nos primeiros milhões de anos da sua evolução parecem ter estado limitadas a uma região relativamente pequena na costa do Paquistão.


As preguiças modernas, embora ainda relativamente abundantes, poderão seguir o caminho das suas parentes extintas. Isso é particularmente verdade para a preguiça de coleira, Bradypus torquatus, a que pertence a pequenita (bebé) acima, que existe apenas na Mata Atlântica do Brasil, e cujos números se mantêm a um nível baixo, com um prognóstico de futuro preocupante. Mais informações sobre esta espécie ameaçada podem ser encontradas numa página da autoria da bióloga Vera Lúcia de Oliveira, que faz trabalho de campo para protecção destes animais.

Ficha técnica
A maravilhosa reconstituição da preguiça de Shasta faz parte deste artigo, no blog de Carl Buel.
Imagem no início da contribuição cortesia de Stefan Laube, retirada da Wikimedia Commons, desta página.
Imagem da preguiça de coleira bebé a ser alimentada com leite retirada desta página do ARKive.

Referências
(ref1) C. de Muizon & H. G. McDonald (1995). An aquatic sloth from the Pliocene of Peru. Nature 375, 224 - 227. Laço DOI.
(ref2) CHRISTIAN DE MUIZON, H. GREGORY MCDONALD, RODOLFO SALAS, and MARIO URBINA (2004). THE EVOLUTION OF FEEDING ADAPTATIONS OF THE AQUATIC SLOTH THALASSOCNUS. Journal of Vertebrate Paleontology, vol. 24, no. 2, pages 398-410.

3 comentários:

Anónimo disse...

«...existem 6 espécies de preguiças actualmente na natureza. Dessas seis espécies cinco são encontradas no Brasil.»

O que comprova - sem sombra de dúvida - que o Brasil é a "Terra da Preguiça... :)

Anónimo disse...

João Carlos..., faz sentido!

Lara MC disse...

Lembrando que uma dessas espécies é endêmica do nosso país.