terça-feira, setembro 26, 2006

Do passado distante para as luzes da ribalta

A National Geographic tem um artigo excelente sobre a pequena bebé afarensis. Aprendi lá, por exemplo, que ela foi encontrada numa região chamada Dikika, que significa mamilo no dialecto afarense. É uma coincidência curiosa e de certa forma apropriada. Embora seja também designada como o bebé de Lucy, isso não é de facto possível, pois a pequenina afarensis terá vivido umas dezenas de milhares de anos antes de Lucy. Foi no entanto encontrada a apenas cerca de 10 km da sua parente adulta e pertence à mesma espécie. Os investigadores que a encontraram baptizaram-na de Selam que significa paz, que é o sentimento que evoca a visão artística da pequenina ao colo da mãe. Particularmente tocante, pode ser vista aqui numa página que permite o acesso a um pequeno filme sobre a descoberta. Recomendo particularmente os dois últimos segmentos, onde Chris Sloan, editor chefe da National Geographic, manuseia uma reconstrução da bebé. A pequenez da criança em questão percebe-se de forma muito clara nesta imagem. É realmente minúscula. A National Geographic possui ainda este artigo, e este filme sobre a descoberta. [... ler mais]

Mas a própria Nature tem algum material de livre acesso sobre o bebé de Dikita. Há um artigo de Bernard Wood (ref1), acessível para consulta livre, cujo título e resumo, embora curtos, mostram claramente a importância do achado:

Uma pequena trouxa preciosa
O esqueleto com três milhões de anos de uma criança de três anos fornece um recurso notável para compreender o desenvolvimento de um antepassado humano que parece ter tido a possibilidade de quer caminhar quer trepar às árvores.

Bernard Wood refere que embora não seja a primeira criança de hominines primitivos a ser descoberta, pois a criança de Taung foi descoberta há 80 anos, se trata de um achado notável por ser um esqueleto quase completo. Refere ainda a grande confiança que se tem quanto ao período em que viveu, pois a criança foi achada em sedimentos com vestígios de cinza vulcânica cuja idade é conhecida com exactidão. A espécie a que a criança pertence é também identificada com grande confiança pois o rosto da Selam mostra as características que distinguem o afarensis de fósseis de outros hominines encontrados em rochas com idades semelhantes. A questão dos 3 anos de idade não é tão precisa. Usando tomografia foi possível ver a posição dos dentes definitivos, ainda por emergir. Comparando esta dentição com a de crianças e chimpanzés a correspondência mais próxima foi com chimpanzés de três anos. Não é contudo de esperar que os afarensis seguissem o mesmo desenvolvimento dos chimpanzés. Trata-se por isso de uma estimativa plausível mas não totalmente segura.

A grande questão é exactamente a da locomoção. As omoplatas são mais parecidas com as dos gorilas que com as dos humanos modernos, e os ossos do único dedo completo curvam como os dos chimpanzés. A Selam mostra ainda órgãos do equilíbrio no ouvido mais próximos dos dos chimpanzés que dos dos humanos modernos. Assim os ombros, dedos e orgãos do equilíbrio mostrariam segundo Bernard Wood ser pouco provável que o Australopithecus afarensis restringisse a sua locomoção ao andar bípede. Há no entanto quem discorde. Owen Lovejoy da Kent State University, especialista em locomoção humana, tem um artigo no blog da Scientific American. Numa tradução livre da parte em que Owen Lovejoy discute a locomoção:
Apesar da omoplata parecer, neste estádio da preparação, ter algumas semelhanças com a do gorila, difere de forma marcada da do chimpanzé, e mostra alguma semelhanças marcantes com a omoplata humana (o que os autores também notam). Algumas das suas proporções são claramente intermédias entre os antropóides e os humanos modernos, já nesta idade geológica de mais de 3 milhões de anos!

Os vários ênfases são do autor e não meus.
Lovejoy faz em seguida uma análise crítica muito detalhada de alguns pontos incluídos no artigo de Bernard Wood, no que se refere à curvatura dos dedos da mão dos A. afarensis, mas também no que se refere ao tipo de postura que o animal podia adoptar. Segundo a leitura que faço do artigo de Lovejoy ele defende que o A. afarensis era claramente um bípede, e que embora as pressões evolutivas fossem mais fortes sobre os membros inferiores, já claramente humanos, esse estilo de vida era também já óbvio na metade superior do corpo. É estimulante ver toda esta controvérsia e discussão logo após o artigo que descreve este espécime. Estas e outras questões vão ser debatidas exaustivamente nos tempos mais próximos, mas também num futuro menos imediato, pois os dados são de certa forma preliminares. Os cientistas continuam a limpar os restos da pequenina Selam dos sedimentos que a aprisionam.

Referências
(ref1) Bernard Wood (2006). Palaeoanthropology: A precious little bundle. Nature 443, 278-281. Laço DOI.

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