quarta-feira, setembro 20, 2006

A lula vampira do inferno

No local onde costumo passar as minhas férias encontrei alguma da literatura que trouxe comigo dois anos atrás. Entre livros e artigos vários encontrava-se um estudo referente a uma criatura com um dos nomes mais inspirados que existem, o Vampyroteuthis infernalis. Significa literalmente a lula vampira do inferno. Foi descoberto e descrito em 1903, pelo biólogo marinho alemão Carl Chun, na expedição Valdivia no Oceano Atlântico, e um desenho do animal foi feito pelo artista da expedição, um senhor chamado Rübsamen. Embora o Vampyroteuthis não ande por aí a sugar o sangue de outras criaturas, e portanto não seja realmente um vampiro, o nome é estranhamente apropriado: aquela capa púrpura entre os tentáculos é definitivamente vampírica, bem como o bico esbranquiçado, e os olhos grandes. Imagino a perplexidade de Carl Chun a ver o primeiro animal da espécie e a perguntar-se o que seria aquilo. [... ler mais]

A ilustração é razoavelmente próxima do aspecto do animal vivo, que se mostra abaixo.


A V. infernalis é uma espécie que se distribui por uma vasta área, tendo sido já encontrados exemplares no Atlântico, Pacífico e Índico. A relação de parentesco desta lula vampira com os outros cefalópodes modernos é algo distante. É parente das lulas e polvos, partilhando algumas características de ambos os grupos. Na páginas da tree of life (ref2) é apresentado como mais próximos do polvos que das lulas, pelo que talvez devesse ser chamado o polvo vampiro dos infernos. Qualquer que seja o parentesco é um animal a que não se fica indiferente, e o modo de vida dele é também interessante. O Vampyroteuthis vive numa região do oceano onde a quantidade de oxigénio é muito baixa, e tem um metabolismo muito reduzido, estando perfeitamente adaptado a uma vida de predador de pequenos animais, pouco activo, e que economiza a energia ao máximo. O animal tem uma consistência algo gelatinosa e muito pouca massa muscular, pelo que durante muito tempo se julgou que practicamente não nadaria e se deixaria arrastar. Sabe-se agora que consegue apesar de tudo nadar depressa com as abas semelhantes a barbatanas durante curtos períodos de tempo.

A lula vampira tem orgãos bioluminiscentes dispersos no corpo (mas não na "capa") que são utilizados para camuflagem. A luz do Sol à superfície faz com que nas profundezas, ao olhar para cima, se veja algo que parece um céu estrelado. Qualquer sombra nesse céu poderia dar uma indicação a predadores situados abaixo. Os orgãos bioluminiscentes produzem por isso uma luz comparável à que penetra da superfície e ajudam a camuflar o animal. Para além deste tipo de defesa algo passivo, a lula vampira, quando em perigo iminente, usa também uma abordagem mais activa, embora diferente da usual noutros cefalópodes. Os cefalópodes que vivem próximo da superfície lançam nuvens de tinta escura para iludir os predadores. A infernal lula vampira, pelo contrário, usa a luz. Estas estratégias defensivas, que empregam o embuste e a bioluminescência, são descritas em detalhe num artigo de Bruce Robison e colegas na revista Biological Bulletin (ref1). Numa tradução livre do resumo:

O cefalópode arcaico das profundezas marinhas Vampyroteuthis infernalis ocorre em águas escuras e pobres em oxigénio abaixo de 600 metros na baía de Monterey, na Califórnia. Exemplares vivos, recolhidos de forma cuidadosa com um veículo operado remotamente, e transportados rapidamente para um laboratório na costa, revelaram dois mecanismo de expressão de bioluminescência nesta espécie até aqui por descrever. No primeiro, é produzida luz por um novo tipo de orgão localizado nas pontas de todos os seus oito braços. No segundo, um fluido viscoso contendo partículas luminosas microscópicas é libertado da ponta dos tentáculos para formar uma nuvem brilhante em torno do animal. Ambos os modos de produção de luz estão aparentemente ligados a estratégias contra predadores. O uso das luzes das pontas é induzido imediatamente por um estímulo devido a contacto, enquanto o o limiar para a expulsão do fluido luminoso é muito mais elevado. Celenterazina and luciferase são os precursores químicos da produção de luz. Este artigo apresenta observações da estrutura e operação dos orgão na ponta dos braços, as características da nuvem luminosa, e como a luz que produzem é incorporada nos padrões de comportamento.


Mostra-se à esquerda os orgãos que produzem a luminosidade nas pontas dos tentáculos. As zonas escuras correspondem às posições das ventosas. Na direita estão indicadas por setas as regiões que produzem a tal nuvem luminosa. As linhas que identificam a escala correspondem a um milímetro. O animal não é muito grande, o comprimento total é inferior a 30 centímetros. Um filme que ilustra a expulsão dessa nuvem luminosa pode ser visto nas páginas do Monterey Bay Aquarium Research Institute (MBARI), aqui. Todos estes efeitos luminosos se destinam a distrair, confundir, e desorientar, potenciais predadores e permitir que o animal se afaste para não muito longe, evitando ser comido. Para um animal com um nome tão sugestivo a vida apesar de tudo não se afigura fácil.

Ficha técnica
As imagens e o filme referido nesta contribuição são cortesia do Monterey Bay Aquarium Research Institute (MBARI), e podem obter-se nesta página.
Alguma da informação apresentada nesta contribuição foi retirada das páginas da tree of life. Ver ref2 abaixo.

Referências
(ref1) Bruce H. Robison, Kim R. Reisenbichler, James C. Hunt and Steven H.D. Haddock (2003). Light production by the arm tips of the deep-sea cephalopod Vampyroteuthis infernalis. Biological Bulletin 205: 102-109. Resumo e PDF.
(ref2) Young, Richard E. 1998. Vampyromorpha Robson, 1929. Vampyroteuthis infernalis Chun, 1903. Vampyroteuthis, The Vampire Squid. Version 01 January 1998 (under construction). Vampyroteuthis infernalis in The Tree of Life Web Project.

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