quinta-feira, outubro 12, 2006

Quando os camarões agitam as águas


Esta imagem mostra o krill do Pacífico, de seu nome científico Euphausia pacifica, a sair do seu ovo e a iniciar o seu estádio larvar. Notem bem a escala: o traço corresponde a um décimo de milímetro. Ao completar o seu desenvolvimento esta espécie de krill cresce qualquer coisa como um factor de 100, atingindo um tamanho máximo que ronda os 2 centímetros, mas mesmo assim é uma criatura pequena. Só que pequeno é muito diferente de insignificante, muitas vezes as aparências enganam. Se, como indivíduos, não impressionam, as aglomerações destes camarões atingem números que desafiam a compreensão. Um trabalho recente, no fiorde de Saanich, na Colûmbia Britânica, estudou uma população onde havia qualquer coisa como 10,000 E. pacifica por metro cúbico, ou seja um animal a cada 5 centímetros. O mais incrível é que esse estudo sugere que este tipo de animais poderão desempenhar um papel importante, até agora ignorado, na produção de turbulência nos oceanos. [... ler mais]

O estudo que mede a turbulência dos eufausídeos é da Eric Kunze e colegas e foi publicado na revista Science (ref1). Numa tradução livre do resumo:

Medições numa região costeira mostraram turbulência que era três a quatro ordens de grandeza superior aquando da ascensão, durante o crepúsculo nocturno, de uma concentração de krill, aumentando a mistura diária no fiorde por um factor de 100.

Uma ordem de grandeza é a expressão científica para um factor de 10, um aumento de três a quatro ordens de grandeza significa 1,000 a 10,000 vezes mais. Mesmo tendo em linha de conta a curta duração da subida (e posterior descida) do krill isso é suficiente para que a mistura das águas nos vários níveis de profundidade seja 100 vezes maior que na ausência do krill. Este processo de mistura das águas tem influências óbvias na produtividade biológica local e até noutros temas muito em voga como o ciclo do carbono, e o clima:
Porque as camadas de organismos nadadores que migram livremente se encontram em grande parte do oceano, turbulência gerada por processos biológicos pode afectar (i) o transporte de nutrientes inorgânicos para a superfície, muitas vezes pobre em nutrientes, a partir de níveis estratificados de águas subjacentes ricas em nutrientes, afectando a produtividade biológica, e (ii) a troca de gases atmosféricos como o CO2 com o interior do oceano estratificado, que não tem comunicação directa com a atmosfera.

Notem bem o ênfase no estratificado, termo que aparece várias vezes. É de facto importante notar que, contrariamente ao que possa parecer óbvio, a água no oceano mistura-se muito pouco entre as diferentes profundidades. Os processos de mistura são importantes pois controlam muitas das propriedades dos oceanos, em particular as trocas entre a camada mais superficial, em contacto com a atmosfera, e as regiões mais profundas. Os processos são muito lentos e são controlados pelo quebrar de ondas internas geradas pelos ventos e marés. Como esse ponto me parece importante, não resisto a citar partes do interior do estudo, que não fazem parte do resumo acessível a todos.
As nossas medições tiveram lugar durante Abril de 2005. Durante esse período os ventos foram sempre muitos ligeiros. As águas abaixo de 5 metros eram fortemente estratificadas, com frequências de flutuação um centésimo de radiano por segundo. Estratificações ainda mais elevadas foram encontradas acima, com uma camada bem misturada com uma espessura não excedendo 3 metros.

Os autores seguiram as movimentações do krill usando métodos acústicos, ou seja ecos de ondas sonoras que permitem detectar a posição dos cardumes. Eco não é necessariamente o termo adequado mas confesso que não sei muito bem como traduzir backscatter. No que se segue vou utilizar retrodifusão, para me referir aos ecos enviados na direcção em que as ondas sonoras forma emitidas.
Durante a luz do dia, o nível denso de krill retrodifusor permanecia estacionário a cerca de 100 metros, e as taxas de dissipação turbulentas eram próximas do nível de ruído instrumental de um milésimo de milionésimo de Watt por kg, um valor comparável aos sinais encontrados tipicamente em mar aberto.

Os 100 metros de profundidade não são um valor típico, mas têm aver com as características deste fiorde, os E. pacifica não podem descer mais pois as águas abaixo são anóxicas, devido à decomposição de matéria orgânica pelas bactérias. Os valores das taxas de dissipação dados aqui aqui são importantes sobretudo para comparação com o que vem a seguir. A mim dizem-me qualquer coisa, pois a turbulência é um tema em que estou particularmente à vontade, mas não se preocupem, não vou começar um tratado sobre o tema. O que é importante é ver como variam.
No crepúsculo nocturno do dia 28 de Abril, a camada retrodifusora começou a subir e a ficar mais difusa. Inicialmente, não se observou nenhum aumento na microstrutura. Contudo, à medida que a base da camada retrodifusora (que se pensa estar associada aos eufausídeos maiores, com números de Reynolds suficentemente elevados para gerar turbulência) começou a migrar, os níveis de turbulência entre 30 a 100 metros de profundidade aproximaram-se de um décimo de milésimo a um centésimo de milésimo Watt por kg num intervalo de 10 a 15 minutos. Estes valores são 100 a 1000 vezes maiores que as taxas de dissipação no oceano estratificado profundo e são comparáveis aos valores encontrados em canais de maré turbulentos.

Aqui há vários pontos importantes. O krill migra em massa para a superfície durante a noite, com os mais pequenos a partirem uns minutos mais cedo que os maiores. São os maiores que geram a maior parte da turbulência. Notem a velocidade razoável, demoram 10 a 15 minutos a percorrer os 100 metros. Por outro lado passa-se de um milésimo de milionésimo a um centésimo de milésimo nos níveis de turbulência! Ou seja, de "zero ponto 8 zeros um" para "zero ponto 4 zeros um"; as tais quatro ordens de grandeza, ou seja um factor de 10,000 que referi atrás. Mesmo quando comparado com o que se passa no mar profundo o valor é 100 a 1000 vezes maior. O krill quando remexe as águas mistura-as de facto bem.

Os autores notam algo mais que também é interessante. As observações sugerem perturbações da ordem de 1 a 10 metros, o que não combina com os cerca de 1.5 centímetros dos indivíduos no cardume de krill. A explicação segundo eles é que os eufausídeos actuam de forma concertada, e não de forma individual, quando nadam para a superfície. Este comportamente é típico dos cardumes de muitas espécies, pelo que este processo não estará por isso limitado ao krill. Toda uma vasta gama de organismos grandes e pequenos, do zooplanctôn (0.5 cm) a cetáceos (da ordem de 10 metros) podem participar, e de facto gerar a maior parte dos níveis de turbulência nas camadas superiores do oceano, dominando os processos de mistura das águas nas regiões onde os organismos marinho são particularmente abundantes. Note-se em particular que isto é também é válido para o krill do Antárcticol E. superba, cujo papel importante no ciclo do carbono já tinha sido discutido aqui.

Nota: este artigo tinha-me passado um pouco "ao lado" quando li a Science. Só me dei conta dele quando li sobre ele no Deep-Sea News.

Ficha técnica
Imagem do krill a sair do ovo, cortesia de Jaime Gómez-Gutiérrez, obtida por intermédio da Wikimedia Commons, nesta página.
Imagem do cardume de krill obtida das páginas do Ocean Explorer da NOAA, aqui.

Referências
(ref1) Eric Kunze, John F. Dower, Ian Beveridge, Richard Dewey, and Kevin P. Bartlett (2006). Observations of Biologically Generated Turbulence in a Coastal Inlet. Science 313 (5794), 1768. Laço DOI

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