terça-feira, fevereiro 14, 2006

De volta aos peixes das grutas

Tal como prometido volto a focar a minha atenção no Astyanax mexicanus, o pequeno peixe que para além de uma forma de superfície com grandes olhos possui pelo menos trinta formas cegas que habitam uma série de grutas. [... ler mais]

A imagem ao lado mostra algumas das variantes (Chica, Curva, etc. são os nomes das grutas).O Astyanax é um exemplo claro de evolução, no entanto alguns detractores da teoria da evolução das espécies por selecção natural apresentam-no como evidência contrária à evolução das espécies por modificação a partir das outras. Basicamente, o argumento, essencialmente da autoria de grupos religiosos, é que, embora desde a "expulsão do paraíso" as espécies estejam sujeitas a mutação e mudança, essas mudanças são em geral degenerativas e não conduzem ao aparecimento de estruturas complexas. Trata-se de um argumento recorrente que afirma que embora exista microevolução, em geral degenerativa e incapaz de produzir estruturas complexas, a macroevolução (aparecimento de novas espécies a partir de outras) não é possível.

Na verdade quando se analisa o Astyanax vê-se que as coisas não são assim tão simples como isso. Este peixe não se trata de uma versão corrompida da forma de superfície, nos aspectos que se revelam importantes para a vida numa gruta é mesmo uma versão melhorada. Por um lado, tal como se discutiu numa contribuição anterior, a degenerescência do olho é programada de forma complexa durante o desenvolvimento embrionário do peixe, e por outro lado o peixe compensa essa perda com o aperfeiçoamento de outros dos seus sentidos. De facto um artigo recente de Tamara Franz-Odendaal e Brian Hall (ref1) no Evolution & Development revê a forma como os diferentes módulos sensoriais da sardina de Mexico mostram diferentes tipos de adaptação à vida numa gruta escura; alguns como a visão atrofiam, outros como os ligados ao paladar expandem-se consideravelmente. Numa tradução livre de um pequeno excerto da introdução do artigo de Tamara Franz-Odendaal:

Na biologia evolucionária uma forma de pensar acerca da modularidade é considerar que o organismo em adaptação como sendo constituído por um número de unidades funcionais morfológicas ou morfogenéticas. Por exemplo, um organismo pode ser encarado como tendo módulos dos membros, módulos dos olhos, módulos dos ouvidos, etc.
E um pouco mais adiante:
Os peixes cegos das grutas fornecem um exemplo interessante pois indivíduos nalgumas populações perderam a visão e ao mesmo tempo expandiram dois outros orgãos sensoriais: as papilas gustativas e sistema mecanossensitivo da linha lateral.
O sistema de linha lateral é um orgão dos peixes, que consiste em linhas de células ao longo do corpo dos peixes, das guelras até à base da cauda, e que permite ao peixe sentir pequenas diferenças de pressão na água circundante. Este orgão permite ao peixe uma forma de "ecolocação lateral" que lhe permite evitar obstáculos, detectar presas ou evitar potenciais predadores. Os receptores que permitem aos peixes este sentido, designados neuromastros, são grupos de pêlos envolvidos por uma cúpula gelatinosa, com comprimentos da ordem dos décimos de mm. Os peixes cegos das grutas apresentam milhares de neuromastros superficiais, cobrindo quase todo o corpo, enquanto nas formas de superfície estas estruturas são muito mais raras. Para além disso, as cúpulas desses neuromastros têm praticamente o dobro do comprimento das dos peixes da superfície e a estrutura interna dos neuromastros é também diferente, tendo sido modificada de formas que podem aumentar a sensibilidade dos neuromastros. Os módulos gustativos também são muito mais abundantes nos peixes das grutas, em espécial na superfície ventral do crânio, e a importância deste sentido para os peixes das grutas pode ser avaliada notando que a parte do cérebro que processa o cheiro e paladar encontra-se aumentada em cerca de 40% nas formas cegas das grutas quando comparadas com as formas de superfície.

O artigo de Tamara Franz-Odendaal e Brian Hall parte então para uma discussão mais aprofundada dos mecanismos genéticos subjacentes, que eu não vou reproduzir aqui, pois faz referência a um grande volume de literatura especializada, mas o que é importante notar é que o Astyanax mexicanus não é simplesmente um peixe degenerado que pode viver sem visão porque habita num local onde os olhos são inúteis. Pelo contrário, as formas das grutas mostram adaptações notáveis ao seu ambiente, e se alguns sentidos se apresentam atrofiados outros expandiram-se consideravelmente. Na verdade um trabalho mais antigo, de Theresa Burt de Perera (ref2), na revista Proceedings of the Royal Society of London B, mostra outro aspecto notável da sardina de Mexico. As formas cegas mantêm um mapa do ambiente circundante no seu cérebro. Numa tradução livre do resumo
Os animais têm muitas vezes que se orientar através de áreas muito maiores que o seu alcance perceptual. O peixe mexicano das cavernas depende da detecção de pequenas perturbações ondulatórias nos objectos através do uso do seu orgão de linha lateral. O seu alcance perceptual (igual ou inferior a 0.05 m) é excedido grandemente pelas suas exigências ecológicas (por volta de 30m). Embora se saiba que possui um mapa espacial do seu ambiente, não se sabe como este peixe liga os diferentes locais (ou a área coberta pelo alcance perceptual).
A questão tal como está posta no resumo é simples. O alcance da linha lateral é de apenas alguns cm, o peixe não consegue ter informação para lá dessa distância. Ora o peixe precisa de explorar um espaço com um raio de cerca de 30 m para sobreviver. A questão é se o peixe sabe onde está, isto é, será que o peixe sabe que aquele espaço de alguns cm onde se encontra fica em tal ou tal lugar na gruta?
Usando a propensão dos peixes das grutas para acelerarem quando face a objectos ou ambientes que reconhecem como novos, utilizei um teste comportamental para verificar se os peixes podem aprender e decorar a ordem de elementos numa paisagem.
Quando colocados num ambiente que conhecem bem os peixes deslocam-se calma e lentamente. Quando confrontados quando com paisagens desconhecidas os peixes mudam de comportamento e passam a deslocar-se depressa, o que parece estar relacionado com a forma como constroem os seus mapas cerebrais. A questão é se os peixes constroem um mapa global em que a sequência de estruturas na paisagem é importante, ou se indentificam apenas os locais isoladamente. Ou seja, se os peixes sabem se um local embora familiar não devia estar ali. O que a autora fez foi mudar a ordem de alguns objectos na paisagem, para ver se os peixes reagiam mudando a velocidade a que se deslocavam. A resposta foi sim, os peixes são sensíveis não só ao padrão mas também à ordem em que as estruturas aparecem.
Mostro, pelo que sei pela primeira vez, que os peixes cegos mexicanos das grutas podem codificar ordem nos seus mapas espaciais. A habilidade para representar a ordem na qual uma série de locais estão espacialmente ligados é uma ferramenta poderosa para animais que se devem orientar para lá do limite do seu alcance perceptual. O mapa espacial resultante é análogo a um puzzle quebracabeças, onde cada peça representa um local cujo tamanho é constrangido pelo alcance perceptual do animal.
Os seja, cada vez que se deslocam estes peixes estão a resolver um quebra-cabeças com dimensões de dezenas de m, tentando encaixar peças de alguns cm. Trata-se de um feito notável para uma criatura tão pequena. O Astyanax mexicanus das grutas é de facto um organismo magistralmente adaptado ao seu meio ambiente.


Referências
(ref1) Franz-Odendaal, Tamara A. & Hall, Brian K. (2006). Modularity and sense organs in the blind cavefish, Astyanax mexicanus. Evolution & Development 8 (1), 94-100. doi: 10.1111/j.1525-142X.2006.05078.x
(ref2) Burt de Perera, T. (2004). Fish can encode order in their spatial map. Proc. Roy. Soc. Lond. B. 271, 2131-2134.

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