sábado, fevereiro 25, 2006

Ataque das galinhas mutantes de dentes afiados

O Gallus gallus domesticus, mais conhecido pelas designações de galo, galinha ou frango tem sido presença assídua nos noticiários dos últimos tempos devido à famigerada gripe das aves. A ave mais comum à face da Terra, com mais de 20 mil milhões de exemplares, é para muitas pessoas sinónimo de alimento, sendo consumida em quantidades apreciáveis como frango assado, frito, na púcara, entre outras iguarias culinárias. Até recentemente ninguém associaria as galinhas a algo de sinistro, em parte porque a falta de dentes coloca as aves em desvantagem em relação aos seus primos próximos, os crocodilos, no que refere ao imaginário de criaturas assustadoras. Aliás é até vulgar associar um acontecimento invulgar a algo que sucederá no "dia em que as galinhas criem dentes". Pois bem, esse dia já chegou. [... ler mais]

Num artigo na Current Biology (ref1), intitulado "The Development of Archosaurian First-Generation Teeth in a Chicken Mutant", Matthew Harris e colegas encontraram pequenos dentes num embrião com 16 dias. Numa tradução livre do resumo:

As aves modernas não têm dentes. Em vez disso, desenvolveram uma estrutura queratinizada especializada, chamada a ranfoteca, que cobre a mandíbula, maxila e pré-maxila.
Os antepassados das aves actuais trocaram os dentes por um bico há qualquer coisa como 70 a 80 milhões de anos, e há mais de 65 milhões de anos que se extinguiram as últimas aves com dentes.
Embora estudos de recombinação tenham mostrado que a epiderme aviana pode responder a sinais que induzam dentes a partir de mesênquima oral de ratos ou lagartos, as tentativas para iniciar de novo a formação de dentes em aves falharam.
Os autores referem aqui estudos dos anos 1980 em que se utilizou material retirado de tecido das gengivas de embriões de lagartos ou ratos para levar as galinhas a produzirem dentes. Contudo, o facto de se ter utilizado tecidos de outros animais não permitiu determinar até que ponto as aves mantinham o potencial para desenvolver de novo dentes, sobretudo porque por exemplo os dentes obtidos no caso da implantação de tecido de ratos se assemelhavam a dentes de ratos e não a dentes de fosséis de antepassados das aves actuais.
Descrevemos aqui a formação de dentes numa galinha mutante talpid2, incluindo os processos de desenvolvimento e as mudanças moleculares iniciais associadas à formação de dentes. [...] Comparamos a formação de dentes no mutante talpid2 com o que acontece no aligator e mostramos a formação de dentes decididamente arcossaurianos (crocodilianos) de primeira geração no embrião da ave.

O talpid2 é um gene envolvido na formação de vários orgãos nas galinhas. Os dentes que se mostram na imagem ao lado são apenas três, e relativamente minúsculos, cobrindo apenas a extremidade da mandíbula. O que aconteceu é que nas aves não mutantes o gene que regula a formação dos dentes nos vertebrados se expressa no lado das gengivas, enquanto nas aves mutantes e nos crocodilos o gene se expressa nas células no topo das gengivas. Os dentes são cónicos e em forma de sabre, tal como os dos crocodilos e bastante diferente dos dentes dos mamíferos. Embora rara a mutação ocorre ocasionalmente mas acarreta problemas vários e os embriões morrem em geral antes dos 12 dias. Só num embrião que sobreviveu 16 dias (e que morreu há 50 anos) os cientistas se aperceberam que se estavam a formar dentes.

A semelhança com os dentes dos embriões dos crocodilos não é surpreendente, afinal de todos os grupos de animais existentes os crocodilos são os parentes mais próximos das aves. Tal como no caso dos peixes cegos que vivem em grutas discutido aqui algum tempo atrás, a perda ou atrofia de uma estrutura num organismo vivo não é um processo simples e a evolução segue por vezes caminhos tortuosos.

Referências
(ref1) The Development of Archosaurian First-Generation Teeth in a Chicken Mutant. Matthew P. Harris, Sean M. Hasso, Mark W.J. Ferguson, and John F. Fallon (2006). Current Biology, Vol 16, 371-377, 21. doi:10.1016/j.cub.2005.12.047

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