quarta-feira, fevereiro 15, 2006

Quando os necrófagos morrem

Algo vai muito mal num ecossistema quando os organismos que se conseguem alimentar de corpos em decomposição desatam a morrer. Nos últimos dez anos os abutres iniciaram o caminho para o que se afigura a sua extinção no sub-continente indiano. As três espécies de abutre existentes na Índia, Gyps bengalensis, G. indicus e G. tenuirostris, sofreram uma derrocada populacional desde os anos 90 que atingiu índices alarmantes. Estima-se que o número de membros destas espécies tenha caido mais de 95%. Estamos a falar do desaparecimento de dezenas de milhões de aves. [... ler mais]

Ao contrário da Europa, onde a perseguição por seres humanos erradicou as populações de grifos e abutres, na Índia as espécies sempre foram toleradas e protegidas, e o animal sempre foi valorizado por vários grupos religiosos. Por exemplo, os Parsis, de religião zaroastriana, não enterram os seus mortos, mas abandonam-nos para serem devorados pelos abutres, e assim não profanarem o solo, a água ou o fogo com um corpo impuro.

A dimensão da catástrofe deixou os investigadores inicialmente perplexos. Os animais mortos apresentavam lesões internas consistentes com um falhanço generalizado dos rins. Após uma série de testes concluiu-se que não se tratava de uma doença infecciosa e pensou-se imediatamente num contaminante ambiental. Só em 2004 se descobriu o culpado (ref1, ref2, ref3). Num exemplo de como as decisões humanas podem ter um impacto ecológico tremendo concluiu-se que a quase extinção dos abutres era devido a um anti-inflamatório utlizado para tratar os búfalos e vacas na Índia e nos estados vizinhos, o diclofenac. O que ninguém antecipou foi que, ao alimentar-se das carcaças dos animais mortos, os abutres fossem tão sensíveis aos efeitos da droga, e que uma tal mortandande fosse possível. A situação tornou-se crítica com os abutres oficialmente classificados como em risco de extinção. O desastre ecológico e sobre a saúde humana pode vir a ser considerável, com a explosão das populações de cães selvagens, e ratos, e com possibilidade de um aumento na transmissão de doenças como a raiva e a peste bubónica.

O governo da União Indiana anunciou em Março de 2005 a sua intenção da banir o produto do mercado indiano por volta de Setembro de 2005, mas a decisão esbarrou na falta de uma alternativa para o diclofenac. As perspectivas parecem finalmente ter melhorado com a publicação na PLoS Biology de um estudo de Swan e colegas (ref4) que mostrou que um outro medicamento, o meloxicam pode ser utilizado no gado sem efeitos nefastos sobre as populações de abutres. Para mais informação (em inglês) consultar as páginas da Darwin Initiative, Vulture Rescue, e BirdLife International. Este é mais um exemplo de como não considerar as consequências de impacto ambiental pode ter um efeito desastroso sobre um ecossistema. Ao introduzir um produto para o gado não basta pensar em como os animais domésticos e os seres humanos vão ser afectados, as consequências sobre todas as outras criaturas no ecossistema também têm que ser consideradas, em particular os animais no topo da cadeia alimentar como predadores e necrófagos.

Referências
(ref1) Oaks JL, Gilbert M, Virani MZ, Watson RT, Meteyer CU, et al. (2004) Diclofenac residues as the cause of vulture population declines in Pakistan. Nature 427: 630–633. versão online
(ref2) Shultz S, Baral HS, Charman S, Cunningham AA, Das D et al. (2004) Diclofenac poisoning is widespread in declining vulture populations across the Indian subcontinent. Proc R Soc Lond B Biol Sci (Suppl) 271: S458–S460 DOI: 10.1098/rsbl.2004.0223.
(ref3) Green RE, Newton I, Shultz S, Cunningham AA, Gilbert M, et al. (2004) Diclofenac poisoning as a cause of vulture population declines across the Indian subcontinent. J App Ecol 41: 793–800. versão online
(ref4) Swan G, Naidoo V, Cuthbert R, Green RE, Pain DJ, et al. (2006) Removing the Threat of Diclofenac to Critically Endangered Asian Vultures. PLoS Biol 4(3): e66. DOI: 10.1371/journal.pbio.0040066. versão online

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