domingo, fevereiro 12, 2006

Uma história de luz e de trevas

O Astyanax mexicanus, conhecido também como "sardina de Mexico" é um pequeno peixe de água-doce, com um comprimento máximo de 12cm, que vive nalguns rios do México e do Sul dos Estados Unidos da América. As populações deste peixe que vivem à superfície possuem olhos grandes, enquanto as populações de um grande número de grutas são cegas e com vários graus de despigmentação (albinas). A sardina de Mexico é um dos poucos exemplos em que o estado funcional de um orgão (nos peixes de superfície) e o estado vestigial (nos peixes cegos) podem ser estudados na mesma espécie. Uma característica da sardina de Mexico que a torna particularmente adaptada a este tipo de estudos, é que se trata de um peixe que se adapta bastante bem ao cativeiro, sendo mesmo razoavelmente popular entre os entusiastas dos aquários.[... ler mais]

O desenvolvimento dos olhos inicia-se da mesma forma nos embriões do peixes das grutas e dos peixes da superfície, mas nas formas cegas as células da lente do olho sofrem morte celular programada, e o olho acaba por ser coberto por uma camada de pele. Experiências em que se transplantou a lente de um peixe da superfície para uma forma cega mostraram que se conseguia induzir desse modo o desenvolvimento do olho (ref1). O Astyanax tem sido utilizado para estudar os mecanismos de morte celular na lente dos olhos e o papel que certos genes desempenham no processo de degenerescência dos olhos nos peixes das grutas. O facto de se dispor de um número variado de populações que provavelmente perderam a visão de forma independente permite ainda ver se os peixes seguiram os mesmos processos de forma paralela ou se diferentes populações seguiram caminhos diferentes. Dois estudos sobre esta simpática criatura acabam de ser publicados na revista Evolution & Development.

Luis Espinasa e William Jeffery (ref2) mostraram que as formas cegas da sardina de Mexico mantêm movimentos retinomotores em resposta às variações de luminosidade idênticos aos peixes de superfície. Para compreender melhor a importância do estudo, nada melhor do que traduzir um dos parágrafos da introdução do artigo:

A perda ou redução de características ancestrais é um acontecimento habitual na história evolutiva dos organismos. Exemplos clássicos incluem a regressão dos membros inferiores nas baleias, dentes nas aves, e olhos e pigmentação de peixes em grutas. Dado tempo suficiente, a decadência e perda definitiva de uma característica morfológica é esperada quando se dá a relaxação da seleção natural nesse traço. Contudo, quando um orgão regride durante a evolução, é muitas vezes pouco claro se a forma estrutural ou a função fisiológica se perde primeiro, embora os estudo de caracteres degenerados em animais de grutas geralmente assumam que a característica perdida não é funcional. Para além disso, não se compreende se a perda de função fisiológica é um prerrequisito para a degenerescência funcional de um orgão.

A função que Espinasa e Jeffery escolheram testar foi a presença/ausência de resposta retinomotora nos peixes das grutas. As células epiteliais da retina seguem um padrão de variação de pigmentação que é alterado em função do cliclo diário de variação da luminosidade entre entre o dia e a noite. Embora nos peixes das grutas a retina seja apenas vestigial, e as células epiteliais tenham perdido a pigmentação, é ainda possível seguir alterações de funcionamento. No fundo a questão é se o peixe perderá primeiro toda a funcionalidade associada ao olho, incluindo a presença de um padrão retinomotor, e só depois o olho atrofia, ou se o orgão atrofiou sem que fosse necessário essa perda de funcionalidade. O procedimento adoptado foi o seguinte:
Cardumes de embriões de uma só ninhada de peixes de superfície e das grutas foram criados por 2,5,6, e 70 semanas e sujeiitos a um ciclo de 14:10 luz/escuridão (LE) [...] Os animais foram sacrificados a cada 12 horas, começando no meio do intervalo de luz do ciclo LE, fixando-os em 4% de paraformaldeído.
Ou seja, os animais das grutas foram sujeitos a níveis de iluminação ao mesmo tempo e nas mesmas circunstâncias dos peixes da superfície. Os autores testaram ainda variações na iluminação para ver como os peixes respondiam a padrões de luz/escuridão variáveis:
cardumes foram criados até ao estádio de 5 semanas sob um ciclo LE 14:10 e então separados em três grupos. O primeiro grupo foi amntido em escuridão constante (EE), o segundo grupo foi mantido em luz constante (LL), e o terceiro grupo foi transferido para um ciclo LE 12:12 que tinha sido atrasado por 12 h. Os animais foram fixados com 4% PFA para histologia a cada 12h, tal como descrito acima,
A análise dos animais da superfície e das grutas mostrou que ambos os grupos seguiam os mesmos tipos de actividade retinal, ou seja ambos tinham o mesmo tipo de resposta retinomotora, quer antes, quer após o início da degenerescência dos olhos nos peixes das grutas. Os autores concluem então que
Aparentemente, os sinais que regulam a degenerescência do olho são independentes e não entram em conflito com o controlo dos movimentos retinomotores.
Ou seja, durante o processo evolutivo, os peixes das grutas não ficaram necessariamente "funcionalmente cegos" antes da degenerescência do olhos se ter iniciado. Mas o pequeno peixe tem mais segredos que serão focados depois de amanhã, noutra contribuição.

Referências
(ref1) Yamamoto, Y., and W. R. Jeffery. (2002). Probing vertebrate eye development by lens transplantation. Methods 28: 420-426.
(ref2) Espinasa, Luis & Jeffery, William R (2006). Conservation of retinal circadian rhythms during cavefish eye degeneration. Evolution & Development 8 (1), 16-22. doi: 10.1111/j.1525-142X.2006.05071.x

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