sábado, novembro 25, 2006

Assobiar como um tucuxi ou latir como um boto

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Por vezes as águas de Mamirauá são cortadas por uma grande e robusta barbatana dorsal, que pertence a um golfinho conhecido localmente como tucuxi, de seu nome científico Sotalia fluviatilis. Para perceber a graciosidade destas criaturas, nada melhor que vê-las em filme, cortesia do ARKive. Como os restantes golfinhos, o tucuxi recorre à capacidade de ecolocalização, usando estalidos de alta de alta frequência (por volta dos 150 kHz), para se orientar e navegar. Mas as capacidades vocais dos tucuxis, e dos golfinhos em geral, não se esgotam na ecolocalização, emitem também vocalizações a frequências bastante mais baixas, vocalizações essas que têm um papel importante na sua vivência ecológica e social. Uma das vocalizações que tem sido motivo de grande interesse são os assobios tonais. Uma das questões acerca destes assobios é a sua origem evolutiva. Serão uma inovação, que apareceu apenas num grupo de golfinhos oceânicos, os chamados delfinídeos, ou serão uma modificação de um mecanismo ancestral? [... ler mais]

Para perceber os termos que vou utilizar em seguida, sugiro, aos que não o fizeram ainda, a leitura da minha contribuição sobre a filogenia dos golfinhos, pois convém ter presente o cladograma que aí apresento. O tucuxi pertence a um dos grupos desse cladograma, os delfinídeos, que se caracterizam pelos tais assobios tonais; apenas 4 das 32 espécies do grupo não os utilizam. Ser tonal significa concentrar a maior parte da energia acústica numa faixa de frequências muito estreita. Eis em baixo um exemplo da intensidade das vocalizações, em função da frequência da emissão, para o tucuxi:

Notem bem a emissão concentrada numa estreita banda que sobe gradualmente em frequência até estabilizar numa frequência ligeiramente abaixo dos 20 kHz. Este é o tipo de representação das propriedades acústicas que define um assobio.

Outros golfinhos, como por exemplo as belugas, conhecidas como "os canários do oceano", utilizam abundamente os seus dotes vocais, mas não recorrem a nada com um carácter tonal tão marcado. Na verdade, nenhum dos membros dos Phocoenidae ou dos Monondontidae parece incluir os "assobios" no seu reportório vocal. Isso levou alguns autores a sugerirem que os assobios seriam uma inovação associada apenas aos delfinídeos. Ora os botos-vermelhos (Inia geoffrensis) também produzem vocalizações. Se as vocalizações dos botos-vermelhos fossem homólogas às dos delfinídeos, dadas as relações de parentesco mais distantes dos botos-vermelhos com os restantes grupos de golfinhos, poder-se-ia avançar com uma hipótese algo diferente: os assobios seriam algo que existiria num antepassado comum aos botos e restantes golfinhos, e que teria sido perdida posteriormente durante a evolução das belugas, narvais e focenídeos.

Para clarificar o tipo de vocalização efectivamente produzida pelos botos, Jeffrey Podos, Vera da Silva e Marcos Rossi-Santos discutem num estudo publicado na revista Ethology (ref1) os resultados de cerca de 40 horas de registos sonoros obtidos no lago Mamirauá. Numa tradução livre do resumo:
Os golfinhos oceânicos (Odontoceti: Delphinidae) produzem assobios tonais, cuja estrutura e função são razoavelmente bem caracterizadas. Bastante menos se conhece sobre as origens evolutivas dos assobios dos golfinhos, incluindo informação básica sobre a estrutura vocal em grupos taxonómicos irmãos como os golfinhos fluviais dos Platanistidae. Caracterizamos aqui as vocalizações do golfinho do Rio Amazonas (Inia geoffrensis), para o qual foram relatados assobios mas que não foram bem documentados. Estudámos Inia na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá na Amazónia Brasileira. Durante 480 blocos de 5 minutos (mais de 5 semanas) monitorizámos e gravámos vocalizações, anotámos o tamanho do grupo e a actividade, e registámos as subidas à superfície para respiração e para mergulho. Globalmente, a produção vocal dos Inia estava correlacionada positivamente com as subidas para mergulho, sugerindo que as vocalizações estão associadas com a alimentação. As análises acústicas mostraram que as vocalizações do Inia são estruturalmente distintas dos assobios delfinídios simples, incluindo aqueles do delfinídio Sotalia fluviatilis registado no nosso local. Estes dados apoiam a hipótese de que os assobios são uma vocalização derivada única aos delfinídeos.

O resumo é algo curto, e alguns dos pontos merecem ser apresentados com um pouco mais de detalhe. Jeffrey Podos e colegas referem que os botos se mostraram muito comedidos, diga-se mesmo avaros, nas suas vocalizações. Cada boto-vermelho só vocalizava em média uma vez a cada 10.1 minutos, e em 40% dos blocos de 5 minutos não foram registadas quaisquer vocalizações. Os autores referem mesmo que cerca de metade das vocalizações dos botos foram produzidas em apenas 10% dos blocos. Contrastando com esta escassez sonora, os tucuxis foram observados a assobiar em 94% das vezes em que foram detectados.

Quanto ao que os botos estavam a fazer nos períodos em que vocalizavam, os autores do artigo, que não podiam observar abaixo da água, pois era bastante turva, conseguiram algumas pistas pela forma como os botos ascendiam à superfície. Distinguiram duas formas distintas. Uma era a subida horizontal ou para respiração. Nesta tipo de subidas o animal trazia a cabeça à tona, ou ascendia com a cabeça e tronco alinhados:

O outro tipo de idas às superfície eram as subidas enroladas ou de mergulho. Durante as subidas enroladas, os golfinhos normalmente expunham apenas o dorso, contraíam o corpo numa forma em 'c' e rapidamente deslizavam para a frente. No artigo não vinham ilustrações mas presumo que seja mais ou menos isto:

Os autores verificaram que as vocalizações dos botos-vermelhos estavam correlacionadas com as subidas enroladas e não com as horizontais. Os botos vermelhos executam as subidas enroladas quando empreendem mergulhos profundos, o que normalmente ocorre quando se alimentam. O comportamento vocal dos botos está assim associado temporalmente com a alimentação.

Quando se analisa a intensidade das vocalizações como função de frequência a que são emitidas, vê-se claramente que as emissões do boto são muito diferentes das do tucuxi. Eis um exemplo de emissões de um boto:

Além de muito mais diversificadas, consistindo em séries de notas de muito curta duração, ocorrem a frequências muito mais baixas, e mostram estrutura harmónica. Por estrutura harmónica entende-se a existência de bandas como o mesmo comportamento temporal mas a frequências múltiplas, ou seja as "emissões semelhantes umas em cima das outras" que se veêm nos gráficos acima.

Os autores falam um pouco mais sobre as diferenças e possíveis utilizações das vocalizações do boto e dos delfinídeos no final do artigo:
As funções dos assobios dos golfinhos começaram a ser elucidades. Por exemplo, surgem na comunicação entre mãe e cria, e interações nos grupos. O nosso estudo mostro-se pouco esclarecedor sobre a função do comportamento vocal dos Inia. Poderão ser utilizadas para facilitar a pesca cooperativa ou serem apenas um efeito colateral sem nenhuma função particular. Não se encontraram indícios de outros tipos de utilização. Por exemplo, mãe e crias não vocalizam quando se reunem após uma separação temporária, e não foram registadas respostas ao passar de vocalizações gravadas.

Ou seja, há ainda muito que estudar.

Há ainda outro aspecto a merecer a atenção dos autores: poderão as vocalizações dos botos ser um precursor dos assobios dos delfinídeos? Jeffrey Podos e colegas pensam que não. Um dos argumentos que avançam é que o roaz corvineiro (Tursiops truncatus), um delfinídeo, produz vocalizações, chamadas "latidos", que são muito semelhantes às dos botos. O mecanismo que as produz deverá por isso ter sido conservado do ponto de vista evolutivo. Mas a diferença mais importante tem a ver com a forma como a frequência no máximo das emissões varia com o tamanho dos animais. Isso é algo que se mostra na figura abaixo para o boto-vermelho (triângulo) e várias espécies de delfinídios (círculos).

É óbvio o grande afastamento do boto em relação à linha que reproduz o comportamento médio dos delfinídeos. Segundo Jeffrey Podos e colegas este desvio é uma idicação muito forte de que as vocalizações no boto são produzidas por um mecanismo distinto, embora coloquem uma ressalva: conhece-se muito pouco sobre os mecanismos de produção de som nos golfinhos. A fonte dos assobios permanece por descobrir. Mostrar que os "latidos" do boto e os "assobios" do tucuxi provêm de fontes sonoras distintas seria a forma mais adequada de mostrar que não são homólogos.

Para já despeço-me do boto-vermelho, mas ficarei atento a novidades. Voltarei no entanto em breve aos delfinídeos, para falar nas funções dos assobios. Se, como tudo parece apontar, se trata de uma característica única dos delfinídeos, para que serve e o que despoletou essa inovação?

Ficha técnica
Imagens "fotográficas" retirada das páginas do Projeto Boto.
Restantes figuras e inspiração para o texto retiradas do artigo abaixo (ref1).

Referências
(ref1) Jeffrey Podos, Vera M. F. da Silva & Marcos R. Rossi-Santos (2002). Vocalizations of Amazon River Dolphins, Inia geoffrensis: Insights into the Evolutionary Origins of Delphinid Whistles. Ethology 108, 601-612. Laço DOI.

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