terça-feira, outubro 28, 2008

A vida difícil dos jovens golfinhos

Estava a passar em revista os artigos que tinha sob a forma de rascunho e qual não é a minha surpresa quando reparei que não tinha publicado o último da minha sequência sobre os golfinhos. Esta coisa andou para aqui escondida durante mais de um ano. Com grande atraso, ei-lo aqui.

Se perguntarem, numa sala cheia de crianças, quantas gostariam se ser astronautas de certeza que muitos braços se levantarão no ar. Se, em vez disso, perguntarem quantas querem ser astronómos, com alguma sorte verão um braço ou dois no ar. Ser cientista é algo que não desperta grande interesse na miudagem. Há no entanto uma excepção. Se perguntarem quem gostaria de ser um dos cientistas que estudam os golfinhos, quase todos os miúdos se mostrarão entusiasmados com isso. Embora não sejam felpudos como os pandas, não deixam de fazer parte dos animais «abraçáveis», pois o rosto dos golfinhos descreve uma espécie de sorriso. Não se trata de um sorriso verdadeiro, a face do golfinho não possui os músculos para isso. É apenas um acaso que faz com que uma boca que evoluíu para caçar peixes e lulas nos pareça simpática. As pessoas tendem assim a afeiçoar-se instintivamente aos golfinhos, e o facto de serem criaturas sociáveis e brincalhonas leva-nos a querer interagir com eles. Aquilo que atrai a criançada são coisas como nadar com os golfinhos, brincar com eles, e mesmo a remota possibilidade de conseguir falar com eles. Ora estas são más razões para estudar mamíferos marinhos. Não interessa se parecem sorrir, os golfinhos são animais selvagens, perigosos, e devem ser encarados como tal. Esta imagem de uma mãe golfinho e da sua cria pode parecer enternecedora, mas há perigos à espreita, não os tubarões de que falei aqui, mas sim outros golfinhos. Este é o lado verdadeiramente tenebroso dos golfinhos de que prometi falar. [... ler mais]

Já tinha falado aqui de um lado "mau" dos golfinhos, ilustrado nesta fotografias, parte de uma sequência que mostra um roaz corvineiro (Tursiops truncatus) a espancar até à morte um boto marinho (Phocoena phocoena):

O fotógrafo, Peter Asprey, tece aqui os seguintes comentários sobre a inclusão dessas imagens em artigos sobre golfinhos na Wikipedia:

Descobri que juntar este tipo de imagens, em qualquer lugar próximo da visão amigável e abraçável dos golfinhos, causa o retorno quase imediato a uma versão anterior.

Muitas pessoas sentem uma espécie de choque quando se lhes mostra algo deste tipo, sobretudo quando se lhes diz que este tipo de ataques não são uma ocorrência isolada. Cerca de 63% dos botos marinhos encontrados mortos em terra em Moray Firth mostravam várias lesões no esqueleto e danos nos orgãos internos que eram consistentes com ataques por roazes corvineiros. O comprimento do corpo dos botos marinhos vítimas de ataques variava entre 0.74 a 1.66 metros, com 84% no intervalo entre 1.0 a 1.5 metros. Ora o que tem de especial este intervalo de tamanho a que corresponde a maior parte dos ataques? Bem, trata-se do tamanho aproximado das crias jovens dos roazes corvineiros, animais com menos de um ano de idade e dependente das mães.

A matança dos botos marinhos parece ser um treino para algo de contornos muito mais sinistros. Pelo menos é isso que sugere um estudo de Patterson e colegas na revista Proceedings of the Royal Society B (ref1). Numa tradução livre do resumo:
A maioria dos botos marinhos encontrados mortos na costa nordeste da Escócia mostram sinais de ataque por roazes corvineiros, mas as razões para estas interações violentas permanecem pouco claras. Exames post-mortem de roazes corvineiros que deram à costa mostram que cinco crias de um total de oito desta mesma área também foram mortas por roazes corvineiros. Estes dados, juntamente com as observações directas da interação agressiva entre um roaz corvineiro adulto e uma cria de roaz corvineiro morta, fornecem evidências fortes para o infanticídio nesta população.


Os danos nos corpos dos crias encontradas mortas eram em tudo idênticos aos danos observados nos botos marinhos. No caso observado por testemunhas humanas, um golfinho adulto agrediu o que então era já um cadáver de uma cria durante 53 minutos. A pancadaria que os roazes corvineiros machos infligem nos botos marinhos parece ser apenas um treino para serem mais eficientes a matar as suas próprias crias.
A semelhança no tamanho dos botos marinhos e das crias de golfinho que mostravam sinais de ataque por roazes corvineiros sugerem que as relações interespecíficas relatadas previamente podem estar relacionadas com este comportamento infanticida. Estas descobertas parecem fornecer a primeira evidência de infanticídio nos cetáceos (baleias, delfinídeos e focenídeos). Sugerimos que o infanticídio deve ser considerado como um factor que molda a sociabilidade nesta e noutras espécies de cetáceos, e que pode ter consequências sérias para a viabilidade de populações pequenas.

Não se trata de um comportamento desviante de um ou outro golfinho, faz parte do repertório de comportamentos ditos normais dos machos da espécie. O infanticídio é conhecido de muitas outras espécies de mamíferos. Por exemplo, já falei aqui do infanticído nos suricatas. É algo corriqueiro também nos grandes felinos e mesmo nos gatos domésticos. Uma possível explicação tem que ver com o longo tempo que as crias de golfinho passam junto da sua mãe, que fica disponível para acasalar pouco tempo depois da morte da cria.

A moral da história é que os golfinhos são criaturas magníficas mas não deixam de ser animais, predadores violentos e perigosos. Pessoalmente acho os verdadeiros muito mais interessantes do que a imagem amigável e inofensiva que a Disney e os operadores turísticos querem fazer passar.

Ficha técnica
Imagem no início da contribuição cortesia de Faraj Meir via Wikimedia Commons.
Imagens de golfinho a matar o boto marinho cortesia de Peter Asprey via Wikimedia Commons.

Referências
(ref1) I. A. P. Patterson, R. J. Reid, B. Wilson, K. Grellier, H. M. Ross, P. M. Thompson (1998). Evidence for infanticide in bottlenose dolphins: an explanation for violent interactions with harbour porpoises? Proceedings of the Royal Society B, Volume 265, Number 1402, Pages 1167-1170. DOI 10.1098/rspb.1998.0414.

3 comentários:

João Carlos disse...

Pensando bem, é possível dizer o mesmo da espécie Homo Sapiens... Mas, como observastes bem no artigo sobre ursos polares, algumas espécies de animais selvagens são tidas como "engraçadinhas" (precisavas ver, a esse respeito, uma reportagem recente na TV local do Rio de Janeiro, sobre um filhote de jaguatirica resgatado na orla da Reserva Ambiental de Poço das Antas: o "gatinho tão engraçadinho" mostrava uma ferocidade enorme, a distribuir unhadas e dentadas nos tratadores...) Não é uma idéia a estimular nos miúdos que não têm discernimento suficiente (e que, mais tarde, vão se tornar adultos sem discernimento...)

Mas lembra-te da discussão sobre o Dr. Manger e a inteligência dos golfinhos? Muitos entenderam erradamente minhas críticas às conclusões do Dr. Manger - que continuo reputando erradas e baseadas em manipulação de dados - porque ainda tem a imagem de "Flipper" como representativa desses animais.

Bem, ainda me restam 2 dos mais de 10 cães domésticos que eu tive... Mas não me passa pela cabeça afagar um cão doméstico desconhecido, sem antes seguir o "protocolo" necessário. ;)

Caio de Gaia disse...

Caramba, também me esqueci dessa da inteligência dos golfinhos! Nunca acabei essa série...

Anónimo disse...

Obrigado pela informação!

Sou biólogo , e sei que muitas pessoas optam por esta profissão por sentirem-se tocadas com o universo um tanto distorcido pela mídia de "animais abraçáveis" e "golfinhos felizes e inofensivos".