quarta-feira, setembro 19, 2007

Mau como os... golfinhos

Esta pequena criatura tímida, que tem que ultrapassar tantas dificuldades simplesmente para conseguir sobreviver num ambiente tão hostil, passou por uma provação de tal forma atroz que me faz estremecer só de a contemplar.

Esta é uma frase de Barbi White e refere-se ao pequeno cetáceo marinho, conhecido em Portugal por boto, da espécie Phocoena phocoena, que se mostra na imagem ao lado. Trata-se do cadáver de uma fêmea, que foi incrivelmente maltratada. Lacerações e feridas perfurantes por todo o corpo, lesões internas e ossos fracturados. A criatura foi espancada até à morte. Não é comportamento predatório, o agressor não estava minimamente interessado em comer o animal que matou. Não se trata de uma ocorrência isolada, este tipo de mortes são muito comuns no litoral de Moray Firth, na Escócia. Mas que animal é responsável por esta morte, aparentemente sem propósito, esta verdadeira "malvadez"? A resposta é algo de inesperado, trata-se do último animal que ocorreria a muitos de nós. [... ler mais]

A identidade dos agressores é dada num artigo de Harry Ross e Ben Wilson na revista Proceedings of the Royal Society of London (ref1). Numa tradução livre do resumo:
A maioria (63%) dos botos encalhados ao longo da Moray Firth, na Escócia, morreram de traumatismo caracterizado por fracturas múltiplas do esqueleto e orgãos internos danificados. Os ferimentos de superfície consistiam de cortes na pele assemelhando-se às marcas de dentes infligidas por um cetáceo noutro. Os espaços entre eles correspondiam aos dos dentes dos golfinhos roazes-corvineiros, dos quais existem populações em Moray Firth. Foram testemunhadas quatro interações violentas entre roazes e botos. As razões para essas interações são desconhecidas e exemplos semelhantes documentados noutros mamíferos são extremamente raros. Estes achados desafiam a imagem benigna dos roazes corvineiros e providenciam uma causa de mortalidade de botos que até agora não tinha sido registada.

Os roazes-corvineiros, da espécie Tursiops truncatus, são os animais que a maioria de nós associa à palavra golfinho. São as criaturas que fazem aquelas habilidades nos parques marinhos e que aparecem nos filmes. São o paradigma do animal simpático ao qual as pessoas reagem de forma emotiva. De certa forma são vistos mais como um ícone cultural do que como um animal selvagem. Só que a natureza é por vezes brutal e não se compadece com as nossas ideias pré-concebidas sobre os outros seres. Os golfinhos não são criaturas místicas com a missão de nos mostrarem o que deveríamos ser. Apesar disso, quando li este estudo, anos atrás, fiquei com uma sensação de perda. Claro que os nossos preconceitos se reflectem também no "horror" que a história nos causa. Se em vez de um cetáceo marinho
a vítima fosse uma alforreca ou um peixe a história não nos afectaria por aí além. Só que a história não acaba aqui, as coisas ficam ainda piores.

A grande questão é o porquê destas pulsões assassinas? Não se trata de um hábito predatório, e outras explicações como competição por alimento, ou uma possível ameaça para as crias, são pouco prováveis. Os botos marinhos são muito pequenos quando comparados aos roazes-corvineiros, na verdade são do tamanho de crias jovens de roazes-corvineiros. A diferença de tamanho entre agressor e vítima é bem patente nesta imagem de um ataque, tirada por Peter Asprey em Maio de 2005, em Chanonry Point na Escócia. O agressor é um roaz corvineiro macho.


A resposta ao porquê seria descoberta pouco depois deste artigo. É algo de tenebroso. Na verdade trata-se de um jogo, algo que os golfinhos fazem para ganharem práctica para actos de violência sobre outras criaturas. Criaturas com o tamanho aproximado dos botos. Tudo leva a crer que os golfinhos matam os botos como treino para serem mais eficientes a matarem as suas próprias crias. Falarei disso na próxima contribuição.

Ficha técnica
Imagem e excerto inicial da contribuição obtidos a partir desta página do Cetacean Research & Rescue Unit.
Foto de ataque cortesia de Peter Asprey, via Wikimedia Commons.
Referências
(ref1) Ross, H. M. & Wilson, B. (1996) Violent interactions between bottlenose dolphins and harbour porpoises. Proc. R. Soc. Lond. B 263, 283-286. doi:10.1098/rspb.1996.0043.

3 comentários:

João Carlos disse...

Pensavas, talvez, em surpreender um ex-Oficial da Marinha com o facto de que os golfinhos são brigões?... Ora, se os próprios tubarões tem medo deles... O que achas que é o principal ingrediente do "repelente de tubarões"?... Cheiro de golfinho!

E existem diversas histórias de náufragos que tiveram suas balsas "empurradas" pelos golfinhos para as praias. Se tivessem caído n'água, talvez contassem história diferente (ou, o que é mais provável, não sobrevivessem para contar história alguma...)

Caio de Gaia disse...

João Carlos, você já pensou em escrever pequenos apontamentos sobre essa vivência na marinha? Entre o litoral brasileiro, a Amazónia e o Pantanal deve ter visto e ouvido histórias interessantes sobre a fauna brasileira.

João Carlos disse...

Caio, eu até já pensei no assunto, mas eu me confesso uma besta quadrada em matéria de biologia. Eu costumo dizer que, de vez em quando, eu sou capaz de distinguir entre uma bananeira e um pinheiro...

Eu já passei pela experiência de ver, a poucos metros de distância, uma onça-pintada (e ter que impedir, aos berros, que minha Companhia de Fuzileiros abrisse fogo sobre ela...)

Outra feita, navegando pelo Rio Paraguai, vi o que, à distância, parecia uma árvore com folhas azuis. Quando nos aproximamos mais, eu percebi que se tratava de uma enorme árvore seca, com um bando de milhares de araras-azuis pousado nela (mas, onde estava minha máquina fotográfica?...)

E as histórias que eu tenho para contar, são todas tristes... De como se acaba com espécies por simples ganância. Prefiro me calar...