sexta-feira, março 02, 2007

Refrigeração de emergência

Esta ave magnífica é uma rola inca, da espécie Columbina inca. Contrariamente ao que o nome indica não é nativa das terras dos Incas: ocorre no sudoeste dos Estados Unidos, México, e ao longo da América Central até à Costa Rica. Sempre gostei do padrão das penas, que faz lembrar uma cobertura de escamas. Pode parecer estranho que um cientista que trabalhe com animais tão belos tenha dificuldade em falar sobre o que faz em conversas de salão mas, tal como referi na contribuição sobre os "disparos" dos pinguins, não é bem a criatura que se estuda, mas sim o que se estuda na criatura. O estudo de que vou falar hoje, tal como no caso dos pinguins, é sobre a questão do que fazer com uma cloaca. [... ler mais]

O estudo é de Ty Hoffman, Glenn Walsberg, e Dale DeNardo e saiu na revista Journal of Experimental Biology ontem. É um artigo fresquíssimo, e sem mais delongas eis aqui uma tradução livre do resumo:

Apresentamos a primeira evidência experimental de que uma ave é capaz de evaporar suficiente água da cloaca para que isso seja importante para regulação térmica. Medimos as taxas de evopuração originárias da boca, da pele, e da cloaca de rolas incas Columbina inca Lesson e de codornizes euro-asiáticas Coturnix coturnix Linnaeus. As pombas incas não mostraram nenhum aumento significativo na evoparação cutânea em resposta à redução da evaporação bucofaríngea. A evaporação cloacal nas rolas era desprezável a temperaturas ambientes de 30°, 35° and 40°C. Contudo, a 42°C, a repartição da evaporação total nas pombas era 53.4% cutâneo, 25.4% bucofaríngeo e 21.2% cloacal, com a evaporação cloacal libertando, em média 150 mW de calor. Isso contrasta com a repartição nas codornizes 32°C (a temperatura ambiente mais elevada suportada por esta espécie) era 58.2% cutânea, 35.4% bucofaríngea e 6.4% cloacal. Estes resultados sugerem que, para algumas aves, a evaporação cloacal pode ser controlada e serve como uma táctica de emergência importante para regulação térmica a temperaturas ambientes elevadas.

A experiência efectuada pelos investigadores tem alguns aspectos deliciosos, com requintes de malvadez. Para determinar a repartição das perdas de água, as rolas foram colocadas em câmaras de vidro com dois compartimentos, com um buraco para a cabeça da rola passar, por forma a que um compartimento media a água perdida pela boca, enquanto o outro media água perdida através da boca e da cloca. Onde é que entra a malvadez? Bem, para medir a água perdida apenas pela pele, Hoffman e a sua equipa selaram as cloacas das aves com cola e mediram então a humidade do compartimento com um higrómetro. Para medirem pele mais cloaca os autores retiraram os "selos" cloacais e repetiram as medições. Os animais sem os selos perdiam bastante mais água, e foi assim que os investigadores determinaram que a temperaturas muito elevadas as rolas ligavam o sistema de refrigeração nas suas cloacas.

Fascinante, até ler este artigo eu pensava que as aves libertavam calor apenas através da boca e da pele. Faz todo o sentido, a cloaca é grande e húmida, em tudo adequada para uma coisa destas, mesmo que pareça ser apenas um mecanismo de emergência. Deve dar muito jeito para trabalhar a horas a que os predadores estão menos activos, e para permitir aos animais alargarem o tempo em que procuram alimento. As rolas só precisam de uma fonte de água para manterem este sistema de arrefecimento a trabalhar em pleno. Contudo, como mostra o exemplo da codorniz, não basta ter uma cloaca, é preciso saber usá-la.

A questão que me ocorreu ao ler o artigo é como alguém se lembraria de fazer um estudo destes. O artigo de divulgação (ref2) que acompanha este artigo de pesquisa explica como tudo começou:
Quando Dale DeNardo viu um monstro de Gila a deambular no Deserto de Sonora com a cloaca projectada para fora do corpo, o fisiólogo da Arizona State University especulou que o animal poderia estar a libertar calor bem como dejectos da sua cloaca.

Esse estudo foi efectuado e publicado, e foi ele que deu a ideia a Ty Hoffman de fazer um trabalho semelhante para as aves. Os leitores regulares já estão a ver, é apenas uma questão de tempo até eu pescar esse artigo e falar aqui de cloacas de lagartos.

Ficha técnica
Imagem da rola inca cortesia de Alan D. Wilson, obtida aqui na NaturesPicsOnline.

Referências
(ref1) Ty C.M. Hoffman, Glenn E. Walsberg, and Dale F. DeNardo (2007). Cloacal evaporation: an important and previously undescribed mechanism for avian thermoregulation. Journal of Experimental Biology 210, 741-749. Laço DOI.
(ref2) Yfke Hager (2007). CLOACAL COOLING. J Exp Biol 2007 210: i. Laço DOI.

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