sexta-feira, abril 07, 2006

A marmota com cornos

Já que falei de roedores bizarros numa contribuição recente, não resisti hoje a desenterrar um artigo com um dos mais estranhos, e infelizmente extinto, membros do grupo. Não, não se trata de uma montagem, era realmente um roedor com dois cornos no focinho, o Ceratogaulus rhinocerus. Esta estranha criatura viveu nas planícies da América do Norte há alguns milhões de anos atrás, durante o Miocénico. O género Ceratogaulus inclui 4 espécies, que são os únicos roedores conhecidos com cornos. O facto de ser um animal fossorial, isto é, de hábitos subterrâneos, e com adaptações para escavar, torna a presença de chifres nasais, de tamanho respeitável nos últimos membros do grupo, ainda mais estranha. Os paleontólogos têm-se questionado sobre a função de tais estruturas, desde a sua descoberta, há mais de 100 anos. [... ler mais]

É aqui que entra Samantha S. Hopkins, que estudou a história evolutiva e a morfologia destas estruturas. De acordo com os resultados dessa análise, publicada nos Proceedings of the Royal Society B (ref1), a melhor explicação para os chifres é que eles eram uma adaptação defensiva para evitar os predadores. Deve notar-se que o animal não era exactamente um peso-pluma, o traço branco na imagem acima corresponde a 1cm. Numa tradução livre do resumo:

Ceratogaulus, um membro do clã extinto de roedores Mylagaulidae, é o único roedor conhecido com chifres, e o mais pequeno mamífero conhecido com chifres. A função deste grandes cornos nasais, que se projectam dorsalmente, num animal subterrâneo tem sido o sujeito de grande especulação entre paleontólogos; os usos sugeridos variam desde combate até escavação.

Aqui convém abrir um parêntesis e avançar um pouco no artigo, até onde a autora discute os vários tipos de fossorialidade nos roedores.
Os roedores modernos usam um de três métodos para partir o solo. Tal como noutros mamíferos, a forma predominante de escavação entre os roedores é escavação por arranhar, no qual as garras das mãos são usadas para separar o solo. Muitos roedores também fazem uso dos seus incisivos, que crescem continuamente e que servem de diagnóstico ao clã, para escavar as suas tocas. Roedores que escavam fazendo uso dos incisivos superiores e inferiores, num movimento masticatório, são referidos como escavadores de dentes-de-escopro. Um último modo de escavação, e o menos comum entre os roedores, é a escavação por levantamento com a cabeça. Nos escavadores por levantamento da cabeça, o nariz, alguma vezes com a ajuda dos incisivos inferiores, é utilizado como uma pá para escavar a toca, usando os poderosos músculos do pescoço para levantar a cabeça.

Os ratos-toupeiros africanos, de que falámos aqui numa contribuição anterior, usam o método dos dentes de escopro. Ora qual era o método que os antepassados do Ceratogaulus utilizavam? Com base na morfologia das vértebras do pescoço, que sugerem músculos muito fortes, e no reforço da espessura dos ossos na zona do nariz, Samantha Hopkins conclui que o Ceratogaulus descende de roedores que escavavam por levantamento da cabeça. Sendo assim, é relativamente fácil ver como os chifres poderiam desenvolver-se numa criatura que já dispunha de um reforço na estrutura óssea na região do focinho. A questão é, poderiam esses chifres ser uma adaptação para facilitar o processo de escavação? A autora argumenta que não, muito pelo contrário.
Os chifres nasais no Ceratogaulus são morfologicamente inconsistentes com o uso como ferramenta de escavação. Os chifres estão posicionados nas extremidades posteriores dos ossos nasais e estendem-se dorsalmente, perpendicularmente ao plano do palato. Em resultado da sua posição posterior, utilizar os chifres para escavar traria a extremidade anterior dos nasais contra o substrato após um muito curto movimento dos chifres, tornando a escavação com os chifres muito pouco eficiente.

Mais adiante nota ainda que a evolução vai no sentido oposto.
Finalmente, os chifres posicionam-se mais atrás com o passar do tempo, pelo que a tendência evolutiva é pra um chifre que é adaptado de forma mais pobre para a escavação com o tempo. Logo, o argumento de que os chifres auxiliavam na escavação não é apoiado nem pela morfologia nem pela progressão evolutiva.

Ora se os chifres tornavam a vida fossorial mais difícil porque razão teriam aparecido? A autora avalia em seguida a questão de combate sexual, e afirma que é pouco provável porque os animais não mostram evidências de dimorfismo sexual, isto é, não se encontram evidências para diferenças entre os dois sexos. Todos os indivíduos apresentam em geral chifres semelhantes, e Samantha Hopkins nota ainda:
Para além disso, muitas das objecções que se aplicam aos chifres como uma ferramenta de escavação também se aplicam ao uso dos cornos no combate sexual. A sua orientação, posição e a morfologia do resto do crânio tornam excessivamente difícil levá-los a encarar um oponente com um tamanho semelhante.

Para além disso, a autora nota que a visão destas criaturas era tão pobre que uma eventual fêmea a ver a competição nem se aperceberia de qual dos machos teria vencido o confronto, o que também é um argumento contra o uso dos chifres para que os indivíduos se reconhecessem entre si. Ora, para que surgiria então uma tal característica, com tão aparentes desvantagens para um criatura fossorial? Fosse qual fosse a razão teria que ser bastante importante, para se manter durante 10 milhões de anos, e para se tornar mais evidente com o tempo. A autora avança com uma explicação: defesa contra predadores. O Ceratogaulus era bastante maior que os seus predecessores, e teria que passar grande parte do seu tempo a alimentar-se à superfície num ambiente aberto (pradaria). Ora um animal pesado, de patas curtas, e grandes garras, seria presa fácil se não tivesse desenvolvido algum tipo de defesa. Samantha Hopkins avança então com o seguinte mecanismo, e analogia com um animal moderno.
Os cornos são largos e robustos e a sua orientação dorsal e posição relativamente recuada tornam-nos adequados a protegerem os vulneráveis pescoço e olhos. Ao elevar a cabeça dorsalmente, os chifres seriam virados para trás, protegendo as áreas mais atacadas pelos predadores. Mostrou-se que uma utilização semelhante dos chifres posteriores-dorsais nos lagartos cornudos levou a um decréscimo da predação.

Um animal fascinante. Infelizmente não consegui encontrar uma ilustração do aspecto que teria em vida.

Referências
(ref1) Samantha S. Hopkins (2005). The evolution of fossoriality and the adaptive role of horns in the Mylagaulidae (Mammalia : Rodentia). Proceedings of The Royal Society B-Biological Sciences. 272 (1573), pp. 1705-1713. Laço DOI.

1 comentários:

João Simões disse...

Procure no GOOGLE por Epigaulus, há muitos desenhos deste animal, parente próximo do Ceratogaulus.