segunda-feira, abril 10, 2006

Prestes a sair da água

Cientistas a trabalhar numa área remota do ártico descobriram os restos fossilizados de uma criatura, a que chamaram Tiktaalik roseae, que nos mostra que os peixes desenvolveram o equipamento que nos permite andar muito antes de terem invadido com sucesso terra firme. Já se sabia que os vertebrados terrestres descendiam de peixes pulmonados com barbatanas carnudas, que existiram há cerca de 385 milhões de anos, e cujos descendentes descobertos em rochas com 365 milhões de anos apresentam verdadeiros membros com dedos. Ora nesses 20 milhões de anos muito aconteceu, em particular a evolução das coisas que realmente fazem um tetrápode, como os pulsos, tornozelos, e dedos. [... ler mais]

O novo fóssil, Tiktaalik roseae, de aspecto vagamente crocodiliano, cai exactamente nesse hiato temporal, e mostra aquilo que seria esperado numa criatura intermédia entre um peixe completamente aquático e um vertebrado capaz de se deslocar em terra firme. A descoberta é descrita em pormenor em dois artigos na Nature. Numa tradução livre do resumo do primeiro (ref1) de Edward Daeschler e colegas:

A relação entre os vertebrados com membros (tetrápodes) e os peixes com barbatanas lobadas (sarcopterígeos) encontra-se bem estabelecida, mas a origem das mais importantes características dos tetrápodes permanece obscurecida pela falta de fósseis que documentem a sequência de mudanças evolutivas. Relatamos aqui a descoberta de uma espécie fóssil bem preservada de um peixe sarcopterígeo do Devoniano Tardio do Ártico do Canadá que representa um imtermediário entre os peixes com barbatanas e os tetrápodes com membros, e fornece uma visão única de como e em que ordem importantes características dos tetrápodes apareceram.

Aqui convém abrir um parêntesis e dizer que os terrenos onde estes fósseis foram descobertos, hoje no círculo polar ártico do Canadá, na altura em que o Tiktaalik viveu se encontravam na proximidade do equador e gozavam de um clima de tipo tropical.
Embora as escamas do corpo, os raios das barbatanas, a mandíbula inferior e o palato sejam comparáveis aos de sarcopterígeos mais primitivos, a nova espécie tem um topo do crânio mais curto, uma região dos ouvidos modificada, um pescoço móvel, uma articulação do pulso funcional, e outras características que prefiguram condições dos tetrápodes. As características morfológicas e o ambiente geológico deste novo animal são indicativos de uma vida em habitats maginais de águas pouco profundas.
Ora os três exemplares estavam tão bem preservados que um artigo inteiro é dedicado às barbatanas deste peixe desaparecido há cerca de 380 milhões de anos. As barbatanas peitoriais são descritas em grande detalhe num segundo artigo de Neil Shubin e colegas. Numa tradução livre do resumo:
Pulsos, tornozelos e dedos distinguem os membros dos tetrápodes das barbatanas, mas evidência directa da origem dessas características não tem estado disponível. Descrevemos aqui os apêndices peitorais de um exemplar de um grupo irmão dos tetrápodes, Tiktaalik roseae, que são morfologicamente e funcionalmente transicionais entre uma barbatana e um membro.


O uso do termo "grupo irmão" refere apenas o facto de que o Tiktaalik era apenas uma entre muitas espécies semelhantes e que é portanto pouco provável que seja um antepassado directo dos tetrápodes, mas seria muito possivelmente um parente próximo desse antepassado directo. Um pouco adiante:
A barbatana do Tiktaalik era capaz de uma vasto leque de posturas, incluindo uma com um membro apoiado no substrato na qual o ombro e o cotovelo estavam flectidos e o esqueleto distal estendido. A origem dos membros envolveu muito provavelmente a elaboração e proliferação de características já presentes nas barbatanas de peixes como o Tiktaalik.

De notar que embora os comunicados de imprensa estejam cheios de termos como "elo perdido" esse termo não é exacto neste caso. O caminho entre barbatanas e membros funcionais deve estar cheio de avanços e recuos. O que o Tiktaalik mostra de forma bastante clara é que os membros dos tetrápodes não são uma inovação assim tão grande, as barbatanas de peixes como o Titaalik já tinham a maioria dos ossos que mais tarde seriam importantes para construir membros capazes de andar em terra firme. Este fóssil é importante mas precisamos de muitos mais para podermos construir uma verdadeira árvore evolutiva. O que é óbvio para já é que a fronteira entre tetrápode e peixe não é assim tão abrupta como se poderia pensar. Para uma descrição muito detalhada desta descoberta, com uma elaborada refutação de alguma retórica religiosa criacionista aconselho a consulta do blog de Martin Brazeau, o Lancelet (em inglês).

Referências
(ref1) Edward B. Daeschler1 Neil H. Shubin and Farish A. Jenkins, Jr (2006). A Devonian tetrapod-like fish and the evolution of the tetrapod body plan. Nature 440, 757-763. Laço DOI.
(ref2) Neil H. Shubin, Edward B. Daeschler and Farish A. Jenkins, Jr (2006).The pectoral fin of Tiktaalik roseae and the origin of the tetrapod limb. Nature 440, 764-771. Laço DOI.

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