quarta-feira, março 08, 2006

A salamandra que se recusa a deixar a água

A criatura para hoje é a Eurycea tynerensis, uma salamandra endémica do centro-sul dos Estados Unidos da América. Resultados recentes mostram que consoante o tipo de habitat esta viscosa criatura pode ou não completar a sua metamorfose. A Eurycea vive em zonas com muitos regatos, e uma grande parte deles seca à superfície durante o Verão. Em zonas em que as rochas do fundo do rio são pequenas e formam um leito compacto, as salamandras residentes completam a metamorfose antes de atingirem a maturidade sexual. No entanto, em zonas onde o cascalho é mais grosseiro e com interstícios suficientemente grandes para as pequenas criaturas do regato se poderem esconder, as salamandras residentes nunca passam do estado larvar. [... ler mais]

É isso que mostram Ronald Bonett e Paul Chippindale, num artigo na evista BMC Biology (ref1). As salamandras adultas têm o aspecto que se mostra abaixo (a marca de 1cm aplica-se apenas aos calhaus, não às salamandras).


Eis a forma das salamandras sexualmente maduras nas zonas onde o cascalho é de maiores dimensões.



Este é um exemplo da versatilidade dos anfíbios, criaturas com ciclos de vida muito complexos. A existência de uma fase terrestre traz benefícios no que se refere à colonização de novos habitats, e à troca de genes entre populações. Permite por outro lado aos animais procurarem charcos quando o leito do rio seca. Isso não é possível em muitas das regiões onde estas salamandras sobrevivem. Em muitas zonas toda a região em torno do regato seca, e a natureza porosa do solo não permite a existência de charcos. A única opção é não abandonar os interstícios abaixo do leito do rio onde ainda existe água. Essas pequenas zonas húmidas só existem nos fundos de regatos onde as rochas são de grandes dimensões e a quantidade de sedimento pequena. Nesse caso não há vantagem em proceder à metamorfose, e as populações que se mantêm na fase larvar terão vantagem. Essa foi a hipótese que os autores decidiram testar.

O artigo é bastante detalhado, e os autores tentaram também estabelecer as relações de parentesco entre as diferentes populações de salamandras. Para se certificar que os animais tinham atingido a maturidade sexual, os autores tiveram que recolher e analisar alguns examplares. Numa tradução livre de alguns parágrafos do artigo:

Eurycea tynerensis foram recolhidas ao longo do planalto de Ozark no Arkansas, Missouri, e Oklahoma, por RMB e colegas de Agosto de 2000 a Agosto de 2003. Selecionámos 22 localidades (11 pedomórfica e 11 metamórficas) ao longo de toda a distribuição geográfica, que representa todo o espectro de divergência mitocondrial dentro da E. Tynerensis.

O termo metamórfica refere-se às populações onde se veêm indivíduos com forma terrestre (isto é que completaram a metamorfose), enquanto o termo pedomórfico refere-se a populações onde os indivíduos atingem a maturidade sexual na fase larvar, não passando por metamorfose para uma forma terrestre. De notar que os autores utilizam indicadores de ADN, neste caso sequências de ADN mitocondrial para estudar as relações de parentesco entre as várias populações. Continuando:
Examplares adultos de cada uma das 22 localidade foram recolhidos para análises filogenéticas. As salamandras foram eutanizadas por submersão numa solução a 10% de MS-22 de acordo com os protocolos da IACUC. Etiquetas e tecidos encontram-se na Universidade do Texas em Arlington, no Centro de Pesquisa de Diversidade de Répteis e Anfíbios.

Isto pode parecer macabro mas era absolutamente necessário estabelecer se os animais tinham ou não atingido a maturidade sexual.
Num período de 5 anos (2000-2005) cada uma destas localidades foi visitada várias vezes, e os indivíduos adultos observados em cada uma delas eram todos ou exclusivamente pedomórficos (sexualmente maduros na forma larval) ou exclusivamente metamórficos (completamente transformados). A maturidade sexual dos pedomorfos foi determinada pela presença de ovos nos ovidutos da fêmeas e testículos bem desenvolvidos e pigmentados nos machos. Em todas as localidades metamórficas foram encontradas fêmeas a guardarem ovos e/ou larvas imaturas em pelo menos uma das visitas, indicando que os E. tynerensis metamórficos estavam a procriar ao longo desses regatos e não apenas de passagem.

Os autores então verificaram a associação como o tipo habitat, em particular o tipo de fundo dos regatos, e utilizaram o ADN mitocondrial para estabelecerem o parentesco entre as várias populações. Os dados apontam para que populações pedomórficas tenham aparecido de forma independente umas das outras. Ora, se os metamorfos se podem deslocar, porque razão não se voltam a misturar ocasionalmente com os pedomorfos, mantendo algum nível de semelhança genética entre as populações? Afinal isso acontece noutros grupos de salamandras. Os autores avançam com um facto que é comum apenas à E. tynerensis e ao grupo de salamandras a que pertence, os pletodontidos.

Quase todos os pletodontidos que completam a metamorfose exibem rituais de acasalamento em terra, uma estratégia pouco comum nas outras famílias de salamandras. Um diagnóstico de adultos que completaram a metamorfose em pletodontidos e que está intimamente relacionada com a corte terrestre é o canal nasolabial, uma depressão na superfície da pele que vai da narina à borda do lábio superior. Tanto quanto sabemos, o canal nasolabial só se desenvolve completamente em indivíduos que completaram a metamorfose. Assim, especulámos que os indivíduos pedomórficos devem reter o sistema de comunicação larval, enquanto os metamorfos terrestres usam outros métodos para encontrar parceiros.

Na práctica o que isto significa é que mesmo que uma salamandra terrestre encontre uma salamandra pedomórfica sexualmente activa não se sente "atraída" por ela, não a reconhece como potencial parceiro sexual. O isolamento reprodutivo é um passo importante para a separação de um grupo de animais em várias espécies. Os autores notam nas conclusões:
A associação notavelmente robusta entre uma característica relativamente simples do habitat como a microestrutura do leito dos regatos e o modo de desenvolvimento nas salamandras do grupo Eurycea tynerensis representa uma evidência poderosa do papel de factores do microhabitat que podem eventualmente determinar mudanças maiores na ontogenia, ecologia, morfologia e história da vida, e contribuir para o processo de especiação.

É sempre interessante ver a forma como os organismos se adaptam ao seu meio ambiente devido à seleção natural, e como novas espécies podem surgir ao longo do tempo. Voltaremos às salamandras amanhã, desta vez às "larvas-de-dragão".

Referências
(ref1) Ronald M Bonett & Paul T Chippindale. Streambed microstructure predicts evolution of development and life history mode in the plethodontid salamander Eurycea tynerensis. BMC Biology, 4:6 Resumo e PDF.

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