sábado, maio 13, 2006

O alimentar dos anjos

A última coisa que nos ocorre quando vemos esta cabeça encimada por tentáculos que parecem cornos é que pertence a uma criatura designada por anjo do mar. O porquê do nome fica uma incógnita ainda maior quando se vêem mais tentáculos a sairem da bocarra aberta. Mas é essa mesmo a designação deste ser. Trata-se de mais um exemplar dos fabulosos caracóis voadores de que falei aqui há pouco tempo, neste caso da espécie Clione limacina. A semelhança com um anjo é contudo óbvia quando se vê o bicharoco a nadar. [... ler mais]

Após uma curta pesquisa pela Internet encontrei dois filmes que mostram o vigoroso e ritmado bater de asas da Clione. Os filmes, que eu recomendo, e até nem são tão grandes como isso, podem ser encontrados aqui (1.7 Mbytes), e aqui (0.5 Mbytes).

Mas não foi a graciosidade com que a criatura se movimenta que me levou a falar nela. O que a leva a ser a criatura do dia foi o facto de eu ter encontrado um artigo de 1992, da autoria de Hermans e Satterlie, no Biol. Bull. (ref1), em que estes autores descrevem a forma como este anjo se alimenta. Os detalhes eram bons demais para não os partilhar.

Eu já tinha referido aqui que os anjos se alimentavam de borboletas, e no caso da Clione limacina, a escolha recai sobre a espécie Limacina helicina. Trata-se da única borboleta do mar que vive na região do ártico, onde atinge densidades algo elevadas e é um elemento importante da cadeia alimentar para muitas espécies. A Limacina helicina alimenta-se estendendo uma rede de muco que usa para apanhar algas microscópicas e também alguns pequenos animais. Embora sejam colectivamente designados por pterópodes, as borboletas e os anjos do mar não são parentes tão próximos como isso, formando duas categorias distintas dentro dos gastrópodes. As borboletas pertencem a um grupo cuja designação científica é Thecosomata, os anjos a um grupo designado Gymnosomata.

Voltemos então ao artigo de Hermans e Satterlie, que no início descrevem em detalhe o elaborado e longo processo para a captura e consumo das presas da Clione. Numa tradução livre do original em inglês:

Para a aquisição da presa, a Clione procede rapidamente à extrosão de três pares de apêndices orais, chamados cones bucais, que cercam e aderem à presa. Cada cone bucal tem forma cónica quando retraído mas torna-se mais cilíndrico aquando da extrosão. A extrosão dos cones bucais é devida essencialmente a enchimento hidráulico. A fase de aquisição da presa é seguida por uma fase manipulativa, durante a qual a presa é virada por forma a que a abertura da concha fique sobre a boca da Clione. A manipulação é efectuada pelos cones bucais e é seguida pela fase de consumo, durante a qual a presa é extraída da concha. A extração envolve o uso de dois sacos de ganchos quitinosos especializados que são parte do aparelho bucal. Cada saco de ganchos contêm tufos de ganchos quitinosos recurvados, que são colocados no interior da abertura da concha para agarrar e puxar a presa da sua concha. Os tecidos moles da presa são desalojados por movimentos alternados de protacção e retracção dos sacos de ganchos. O engolir é auxiliado por movimentos de protacção e retracção da rádula, que é também parte do aparelho bucal. Os tecidos moles da presa são engolidos inteiros.

Os tais cones bucais são as coisa que se veêm a sair da boca da Clione na imagem logo no início desta contribuição. Tudo demora cerca de 30 minutos, que são passados essencialmente no manobrar da presa e sobretudo no lento puxar da relutante Limacina da sua concha. O artigo de Hermans e Satterlie é essencialmente dedicado à fase de captura. Se após segurar a presa, a Clione demora bastante tempo até engoli-la, a fase inicial é extraordinariamente rápida.
A fase de aquisição da refeição envolve abertura rápida da boca e a extrosão de três pares de cones bucais. A abertura da boca ocorre em 10 a 20 milissegundos, enquanto o enchimento hidrostático dos cones bucais demora 50 a 70 milissegundos.
O processo está ilustrado nas imagens abaixo que os autores obtiveram através da filmagem com uma câmara de alta velocidade, com uma imagem a cada 10 milissegundos. A segunda imagem neste sequência corresponde ao instante do contacto do anjo com a sua presa, uma pobre borboleta segura por uma pinça.


Na terceira imagem, 10 milissegundos após o contacto, o anjo está já a estender os cones bucais, que na quarta imagem já estão estendidos quase ao máximo e já seguram a infeliz presa. É impressionante mas este animal necessita de menos de um décimo de segundo para segurar a vítima após fazer contacto. A Clione não deixa nada ao acaso:
Os cones bucais rodeiam a presa e libertam um material viscoso que pode ser utilizado como um suporte adesivo à concha da presa.
A pobre borboleta do mar não tem nenhuma hipótese de fuga. Enfim, o estar segura pela pinça também não ajudou em nada neste caso. O seu destino é ser engolida duma só vez.

Há mais alguns aspectos peculiares destes animais que eu aproveito para partilhar aqui. Uma das características mais curiosas dos Thecosomata como a Limacina helicina é que, embora tenham reprodução sexuada com sexos diferenciados, o sexo do animal depende da idade. As Limacina do ártico começam a vida adulta como machos, mas quando ultrapassam os 5 mm de comprimento mudam de sexo e tornam-se fêmeas. Quanto à velha questão do sexo dos anjos, pois bem os Gymnosomata, como a Clione, são hermafroditas simultâneos, isto é, os dois sexos estão presentes ao mesmo tempo em cada indivíduo. Todos os anjos do mar possuem uma abertura genital feminina e um orgão masculino para a cópula. A coisa mais parecida com pornografia dos anjos que encontrei foi esta foto aqui, que mostra que o acasalamento da Clione é feito com os indivíduos em posição ventral. Infelizmente não a posso colocar aqui porque o autor é muito claro quanto aos direitos.

Esta é possivelmente a minha última incursão no domínio dos caracóis voadores nos tempos mais próximos. Trata-se contudo de criaturinhas fascinantes, e se aparecerem artigos recentes com detalhes interessantes voltarei a elas.

Referências
(ref1) COLIN 0. HERMANS' AND RICHARD A. SATTERLIE (1992). Feeding Behavior in a Pteropod Mollusk, Clione limacina Phipps. Biol. Bull. 182: l-7. Resumo e PDF

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