segunda-feira, março 26, 2007

O dinossauro na toca

A paleontologia é muitas vezes um trabalho de detective e um pouco frustrante, em particular no que se refere aos aspectos relativos ao comportamento dos animais. É certo que os ossos nos dizem muita coisa, mas é sempre uma ocasião especial quando algo relativo ao modo de vida de uma criatura fossiliza com ela. É o caso da estrutura que mostro aqui ao lado, encontrada em Montana, nos Estados Unidos da América, em terrenos do Cretácico Médio. O que estamos a ver é um molde de um tubo que teria sido originalmente oco. Este molde não é mais que o fóssil de uma toca escavada por um animal num terreno de tipo argiloso, e que foi preenchida com materiais mais grosseiros. Esta toca torna-se ainda mais interessante quando se descobre que os seus ocupantes morreram lá dentro. [... ler mais]

Dentro da toca os cientistas encontraram restos de pequenos dinossauros herbívoros, de um grupo conhecido como hipsilofodontes. Trata-se de uma nova espécie, a que o deram o nome Oryctodromeus cubicularis. Os hipsilofodontes são dinossauros de certa forma anónimos e desconhecidos do grande público. Relativamente pequenos (o O. cubicularis dar-nos-ia pelos joelhos), herbívoros, sem cristas, espigões, placas ou outros tipos de ornamentação peculiar, não chamam muito a atenção. Parece-me por isso estranhamente adequado que tenha direito a um certo destaque com esta descoberta. Ora o achado não se limitou a ilustrar o aspecto de escavador do O. cubicularis, revelou-nos também algo sobre a sua vida familiar.

O achado é descrito por David Varricchio e colegas na revista Proceedings of the Royal Society B (ref1). Numa tradução livre do resumo:

Uma descoberta fóssil no Cretácico médio da Formação de Blackleaf no sudoeste de Montana nos EUA, revelou os primeiros vestígios fósseis, através de de uma estrutura no terreno e do corpo, da existência de comportamento fossorial num dinossauro.

Na verdade sabia-se que os dinossauros eram capazes de escavar, pois foram encontrados muitos ninhos de superfície. A novidade aqui é que se trata de construir uma toca, algo que nunca se tinha conseguido mostrar anteriormente num dinossauro:
Vestígios do esqueleto de um adulto e dois juvens de Oryctodromeus cubicularis, uma nova espécie de dinossauro hipsilofodonte, foram encontrados, numa câmara expandida distalmente, de uma toca preenchida por sedimentos. A correspondência entre a toca e as dimensões dos adultos indicam que o Oryctodromeus foi quem fez a toca.

Um aspecto igualmente importante é que o animal tem características físicas que mostram que estava à altura da tarefa:
Para além disso, o Oryctodromeus exibe caracterísitcas no rosto, cintura escapular, e pélvis, consistentes como hábitos escavatórios embora retendo proporções cursoriais nos membros posteriores.

Hábitos cursoriais significa que se tratava de animais adaptados para correr, e correr depressa. Eis aqui uma reconstrução da face deste dinossauro escavador de buracos:

A presença dos juvenis é um ponto muito importante: duma assentada ficamos a saber que estes hipsilofondontes viviam em tocas, que eles próprios escavavam, e que cuidavam das suas crias.
A associação de uma adulto e dois jovens dentro da câmara terminal fornece evidência definitiva da existência de cuidado parental prolongado nos Dinosauria. Tal como muitos vertebrados modernos cursoriais que escavam, a construção de tocas no Oryctodromeus pode ter sido uma adaptação importante para criar os jovens.

Mas as vantagens não se ficam por aí:
A construção de tocas representa também um mecanismo através do qual os pequenos dinossauros poderiam ter explorado ambientes extremos a latitudes polares, desertos e zonas de altitude elevada em montanhas. A capacidade dos dinossauros de encontrar ou construir abrigos pode contradizer alguns dos cenários do impacto do acontecimento do Cretácico-Paleogeno. Os hábitos escavatórios expandem a gama de comportamentos conhecidos em dinossauros não avianos e sugerem que o carácter cursorial dos antepassados dos dinossauros não impediu a evolução de diferentes regimes funcionais, tais como a fossorialidade.

O tal acontecimento do Cretácico-Paleogeno é a extinção dos dinossauros (excepto as aves), possivelemente em consequência do impacto de um meteorito. Alguns autores atribuíam a sobrevivência de alguns grupos de animais ao terem por hábito esconderem-se em tocas.

Curiosamente, os cientistas descobriram pequenos túneis ligados ao túnel maior, como se pode ver na reconstrução da toca, na imagem abaixo:

A toca do O. cubicularis seria partilhada com pequenos animais, quem sabe se não seriam pequenos mamíferos. A extensão total da toca não é conhecida, a parte terminal, onde foram encontrados os ossos, foi afectada por processos erosivos.

Esta descoberta ilustra sobremaneira a importância de que os trabalhos de recolha de fósseis, pelo menos quando algum tipo de escavação esteja envolvida, sejam efectuados por peritos. O carácter único da descoberta resulta em grande parte do grande cuidado com que a equipa de investigação analisou os sedimentos que rodeavam os ossos. Foi isso que lhes possibilitou verificar que os dinossauros estavam dentro de um tubo de material diferente da rocha circundante. Como os autores referem no resumo, este dinossauro tem algumas características anatómicas que são consistentes com habitos escavatórios, mas que na ausência da toca seriam difíceis de explicar. Aliás os autores indicam que o mesmo tipo de adaptações parecem existir noutros grupos de hipsilofodontes aparentados. É possível que esses grupos também escavassem tocas. Aqui não posso deixar de citar Kevin Padian, que escreve num comentário a esta descoberta, na mesma revista (ref2):
Aquilo que me saltou à vista ao rever este artigo -- e suspeito que muitos dos meus colegas estarão de acordo -- é que as inferências de comportamento que foram possíveis devido ao trabalho cuidadoso de Varricchio et al. (2007) provalmente teriam sido ignoradas se este exemplar tivesse sido descoberto e escavado pela maioria dos colecionadores comerciais. Muito provavelmente teria sido escavado com a maior rapidez, preparado na sua matriz com relativamente pouca consideração pelo contexto geológico ou ambiental, e as peças em falta restauradas a partir de quaisquer modelos à mão, por forma a ser vendido no mercado com o maior e mais rápido retorno monetário possível. Eu vi muitos exemplares como este em casas de leilões e catálogos. A ciência, e logo o seu valor para o público, teriam sido perdidos no processo.

O comentário tem a ver sobretudo com a situação que se vive nos Estados Unidos:
Esta descoberta é em primeiro lugar um tributo ao valor de conservar os olhos bem abertos no terreno e observar tudo, e foi preciso um grupo muito especial de cientistas para perceber o significado da descoberta que fizeram. Mas é também um aviso implícito sobre a situação nos Estados Unidos, onde descobertas de valor incalculável para a ciência, educação e para a posteridade são perdidas de forma rotineira pelos esforços de grupos de pressão de colectores de fósseis comerciais. Apenas a legislação poderá parar com as suas depredações, porque neste momento não têm qualquer incentivo financeiro para colaborar com cientistas e educadores.

Isto não se aplica a algo tão simples como alguém que repara num fóssil completamente a descoberto no meio de um terreno. Eu tenho alguns em casa. Sempre que possível acompanho essas recolhas de uma fotografia (fácil com as câmaras digitais) e posição da descoberta (fácil com GPS). A maioria dos fósseis acaba na verdade por se perder para a erosão, e são poucos os que são realmente invulgares. No entanto, se notarem algo que vos pareça interessante, e que exija algum tipo de escavação, convém contactar alguém que saiba extrair o fóssil com a cautela devida.

Referências
(ref1) David J. Varricchio, Anthony J. Martin, Yoshihiro Katsura (2007). First trace and body fossil evidence of a burrowing, denning dinosaur. Proceedings of the Royal Society B: Biological Sciences. Laço DOI.
(ref2) Kevin Padian (2007). Dinosaurs digging deeper. Proceedings of the Royal Society B: Biological Sciences. Laço DOI.

0 comentários: