segunda-feira, março 19, 2007

As mães que usam chicote para cuidar dos filhos

Após um pequeno interregno motivado pelo facto de estar em viagem e hospedado num hotel sem ligação internet nos quartos, eis-me de volta a casa e às contribuições regulares. Para celebrar o regresso às lides nada melhor que um extenso artigo sobre aranhas.

Esta criatura de ar ameaçador é uma aranha-chicote ou amblipigídeo. O primeiro par de patas encontra-se transformado num fino e longo orgão sensorial que usam para sondar as redondezas. Estes aracnídeos são predadores activos, recorrendo aos pedipalpos transformados em pinças para impalarem as suas presas. Na imagem podemos ver uma mãe e algumas das suas crias com sete meses. Esta é uma imagem algo pecular nos aracnídeos, na sua maioria predadores solitários que não hesitam em recorrer ao canibalismo. Em muitos dos parentes afastados desta Damon diadema, uma reunião deste tipo terminaria, de forma mais ou menos rápida, com um grupo de apenas um indivíduo. Algumas espécies de amblipigídeos parecem assim fazer parte do relativamente reduzido grupo de aracnídeos sociais e semi-sociais, isto é, que toleram os seus semelhantes durante períodos de tempo relativamente longos. [... ler mais]

A sociabilidade das aranhas-chicote é descrita num artigo de Linda S. Rayor e Lisa Anne Taylor na revista Journal of Arachnology (ref1). O estudo englobou uma outra espécie, Phrynus marginemaculatus, que se mostra na imagem abaixo.

Trata-se de uma mãe e suas crias de cerca de dois meses de idade. Para além das crias que se podem ver facilmente, há mais duas por baixo das patas esquerdas da mãe. As autoras do artigo explicam em que consiste o contacto social entre estes animais, durante quanto tempo dura, e qual a sua função. Numa tradução livre do resumo:

Ajuntamentos, interações prolongadas entre mães filhos e irmãos, e comportamentos sociais complexos, são extremamente raros entre os aracnídeos. Relatamos e quantificamos pela primeira vez associações prolongadas entre mãe filhos e irmãos nos Amblypygi, ajuntamentos activos, e interações tácteis frequentes de tipo amigável (tolerantes e não agressivas) em duas espécies: Phrynus marginemaculatus C.L. Koch 1840 (Phrynidae) e Damon diadema (Simon, 1876) (Phrynichidae).

As autores verificaram que se trata de animais bastante amigáveis, com os pequeninos a sondarem constantemente os irmãos e a mãe com os seus longos chicotes, e a manterem-se próximos deles. As autoras notaram algumas diferenças entre a duração desta tolerância nas duas espécies:
A sociabilidade é caracterizada pelo contacto frequente e pela tolerância, e pelo agonismo pouco frequente até à idade da maturidade sexual na D. diadema e durante a idade adulta na P. marginemaculatus.

Os comportamentos agonísticos são comportamentos de conflito. Esse tipo de interações começam a tornar-se frequentes nas D. diadema a partir dos 13 meses de idade (maturidade sexual). Nesta espécie os adultos são criaturas solitárias só se reunindo para os rituais de acasalamento. Na outra espécie, a P. marginemaculatus, os adultos continuam a dar-se bem uns com os outros, formando facilmente agregados com indivíduos de várias gerações.

As autoras tentaram verificar os benefícios/custos deste comportamento, em particular se teria algo a ver com a presença de predadores, só que aí enfrentaram algumas dificuldades inesperadas. O que fizeram foi colocar um pequeno lagarto insectívoro da espécie Anolis carolinensis junta às aranhas-chicote. O problema é que os aracnídeos não se mostraram intimidados pela presença do vertebrado, pelo contrário, aproximaram-se e sondaram-no activamente com os seus "chicotes". Isso foi verdade quer para os adultos de bom tamanho da Damon diadema,

quer mesmo para um minúsculo sub-adulto da Phrynus marginemaculatus com apenas seis milímetros de comprimento.

Embora um confronto directo não tenha resultado, foi possível intuir algo de forma mais indirecta. As autoras notaram que os animais reagiam fortemente a perturbações do seu ambiente, tais como sacudir os habitáculos durante alguns segundos. Eis aqui uma imagem de uma simpática família, com uma mãe e algumas das suas crias, com um mês e meio de idade, antes de uma dessas sacudidelas.

Eis uma imagem tirada logo a seguir a quinze segundos de agitação:

Podemos ver que os pequenitos se aproximam um dos outros e da mãe, com alguns deles escondidos debaixo dela. As autoras verificaram que o efeito era dependente da idade: quanto mais jovens maior era o efeito de aproximação dos animais. Verificaram ainda que, quando procediam a trasferências de habitáculo, uma das fêmeas com crias de sete meses tentou defender os jovens com posturas agressivas e com ataques aos investigadores. Eis o que as autoras concluem, ainda no resumo do artigo:
Examinámos do ponto de vista experimental os benefícios e custos potenciais que afectam os ajuntamentos: risco de predação, habitats preferidos, e disponibilidade das presas. Apenas o risco acrescido de predação diminuiu as distâncias entre os vizinhos mais próximos e levou a um aumento da vigilância maternal. Os indivíduos formavam agregados numa variedade de texturas de superfície e localizações que variavam de dia para dia, em vez de se juntarem apenas nos seus microhabitats preferidos. A manipulação da abundância de presas não mostrou efeitos na tendência para o ajuntamento.

Esta contribuição já vai longa e já foquei todos os pontos mais importantes do estudo, mas há um aspecto que não resisto a referir aqui. É que os pequenitos não partilham as presas. Pelo contrário, não hesitam em roubar a comida dos irmãos caso sintam a fome a apertar. Com efeito, tal como é referido pelas autoras no texto a meio do artigo:
Embora o roubo de presas fosse pouco comum quandos os animais estavam bem alimentados, observámos animais imaturos da D. diadema a roubarem comida uns dos outros após serem privados de alimentos durante apenas três dias. Em três ocasiões observámos indivíduos a roubarem com sucesso um grilo de um outro indivíduo. Em cada um desses casos, o indivíduo que roubou a comida voltou para o ajuntamento compacto com os seus irmãos e, consequentemente, a comida foi roubada de novo por um terceiro indivíduo.

Criaturinhas fascinantes. Os amblipigídeos manifestam um comportamento maternal que inicialmente é semelhante a alguns outros tipos de aracnídeos, como os escorpiões. As mães carregam os ovos numa bolsa, e após a eclosão as crias, quase imóveis e indefesas, agarram-se ao abdomén da mãe onde permanecem durante o primeiro estádio de desenvolvimento. Após um curto período de tempo as crias atingem um estádio em que podem movimentar-se livremente e em que abandonam o corpo da mãe. Ora, pelo menos nas espécies deste estudo, essas crias não se dispersam, apesar de móveis permanecem junto da mãe que não só não se alimenta delas, como ainda as protege. É esse o comportamento que é algo atípico nos aracnídeos. Devo no entanto referir que algumas espécies de aracnídeos possuem comportamentos de tipo social bastante complexo, vivendo em grupos alargados e cooperando na defesa, na construção de abrigos, e na captura de presas. As aranhas chicote são diferentes pois, como se viu, não cooperam em nada.

Alguns estudos anteriores tinham mostrado níveis variáveis de tolerância em várias espécies de aranhas chicote, o que este estudo mostrou foi um gregarismo voluntário e mantido de forma activa pelos indivíduos. As espécies usadas neste estudo são típicas da Florida (P. marginemaculatus) e da Tanzânia e Quénia (D. diadema). Há contudo treze espécies de aranhas chicote conhecidas no Brasil. Talvez mostrem o mesmo tipo de comportamento semi-social destas duas espécies. Na introdução do artigo as autoras referem mesmo um trabalho que indica que na espécie Heterophrynus longicornis, existente na Amazónia brasileira, os adultos são bastante tolerantes quanto à presença uns dos outros.

Ficha técnica
Imagem no início da contribuição retirada do comunicado de imprensa no Cornell Chronicle Online.

Referências
(ref1) Linda S. Rayor & Lisa Anne Taylor (2006). Social behavior in amblypygids, and a reassessment of arachnid social patterns. The Journal of Arachnology, Volume 34 Number 2 p399-421.

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