terça-feira, agosto 15, 2006

Oceanos de bactérias

Eu já falei aqui no Censo da Vida Marinha, em particular a propósito de pterópodes. Mas o Censo da Vida Marinha não se interessa apenas por caracóis voadores, investiga também criaturas muitíssimo menores. Existe mesmo aquilo que se designa por Censo Internacional dos Micróbios Marinhos, que tem feito esforços para aumentar a eficiência dos processos que avaliam a riqueza taxonómica dos oceanos. A situação nos últimos anos progrediu rapidamente devido a técnicas que permitem analisar directamente o ADN de uma amostra, sem ser preciso cultivar os diferentes microrganismos em laboratório como no passado. Esse foi um grande avanço, pois apenas se consegue cultivar em laboratório uma ínfima fracção dos micróbios marinhos. Contudo, identificar o número de tipos de micróbios continua a não ser uma tarefa fácil. [... ler mais]

Num mililitro de água do mar podem existir de 100 mil a um milhão de microrganismos, mas esse número é em grande parte devido a uns poucos tipos de micróbios. Daí que, enquanto esses tipos mais comuns são fáceis de identificar mesmo com amostras pequenas, identificar as estirpes mais raras exige que se investiguem volumes muito maiores do que aqueles que se descrevem na literatura. Os trabalhos publicados referem desde uma poucas centenas até um máximo de 3,000 tipos de micróbios por litro de água mar. Ora uma investigação recente mostra que estes valores pecam claramente por defeito.

Fruto do trabalho desenvolvido pelo Censo Internacional dos Micróbios Marinhos, Mitchell L. Sogin e colegas relatam, num artigo nos Proceedings of the National Academy of Sciences USA (ref1), resultados relativos à abundância e número de estirpes de bactérias que se podem encontrar na água das profundezas dos oceanos. Vamos então ao artigo, e nada melhor do que começar com alguns números que os autores referem na introdução:

Os oceanos do mundo pululam com formas de vida microscópicas. Contagens nominais de >105 células por mililitro na superfície da água do mar prevêm que os oceanos acolhem 3.6 x 1029 células microbiais com conteúdo total de carbono de aproximadamente 3 x 1017 g. Comunidades de bactérias, arquebactérias, protistas, e fungos unicelulares respondem pela maior parte da biomassa dos oceanos. Estas fábricas microscópicas são responsáveis por 98% da produção primária de energia e medeiam todos os ciclos biogeoquímicos nos oceanos.

O 3 seguido de 17 zeros pode não parecer impressionante, mas reparemos que se admitirmos um peso médio de cerca de 60 kg por pessoa, dos quais cerca de 20% é carbono, os cerca de 6,000 milhões de seres humanos no nosso planeta contêm "apenas" cerca 7.2x 1013 g de carbono, ou seja 4,000 vezes menos.

Antes de introduzir o habitual resumo, convém salientar um ponto importante. Nos animais, uma espécie é em geral um grupo de indivíduos que em população produzem descendentes férteis cujo material genético é uma combinação do material genético dos progenitores. A chave aqui é o baralhar de material genético e a possibilidade de fertilização cruzada. Uma espécie animal pode assim ser encarada como uma unidade evolutiva. Mas mesmo nos animais há excepções, naqueles que se reproduzem por partenogénese, isto é, de forma assexuada, e são conjuntos de clones. Neste caso, falar em "espécie" tem um valor menos óbvio do ponto de vista conceptual.

O conceito de espécie também não faz muito sentido em micróbios como as bactérias, que se reproduzem assexuadamente. Embora nas bactérias possa haver troca de material genético entre indivíduos diferentes, através de um processo chamado transferência lateral, esse processo não é parte determinante ou necessária do processo reprodutivo. Sendo assim faz muito mais sentido não falar em espécies mas utilizar um indicador de semelhança genética, que é colocado num certo limite e nos dá uma ideia da variabilidade genética na amostra de micróbios. Passando então ao resumo:
A evolução dos micróbios marinhos ao longo de milhares de milhões de anos prevê que a composição das comunidades microbianas deveria ser muito superior às estimativas de uns poucos milhares de tipos diferentes de micróbios por litro de água do mar. Ao adoptar uma estratégia paralela de identificação maciça de marcadores, mostramos que as comunidades de bactérias das águas profundas do mar do Atlântico Norte e fontes hidrotermais dos fundos oceânicos são uma ou duas ordens de grandeza mais complexas do que anteriormente relatado para quaisquer ambientes microbianos.

Os números no artigo são impressionantes. Os autores utilizam métodos estatísticos, as chamadas curvas de rarefação, para estimar quantas estirpes poderão existir numa dada amostra usando critérios de diferença de 3%, 5% e 10%. De acordo com o critério mais alargado (3%), que os autores utilizam para indentificar o "tipo" de micróbio, mas apesar de tudo suficientemente amplo para evitar os erros de identificação, numa das amostras existiriam mais de 23,000 estirpes distintas de micróbios num litro de água. Mesmo com um critério bastante mais restritivo (10%), que indica o número de estirpes muito divergentes, essa amostra conteria pelo menos 8,000.
Um número relativamente pequeno de diferentes populações domina todas as amostras, mas as centenas de populações de baixa abundância respondem pela maior parte da diversidade filogenética. Esta "biosfera rarefeita" é muito antiga e pode representar uma fonte quanse inesgotável de inovações genómicas. Os membros da biosfera rarefeita apresentam uma grande divergência entre si e, em diferentes períodos na história da Terra, podem ter tido um impacto profundo no modelar dos processos planetários.

A afirmação com o ênfase a negrito significa que embora raras agora nada impede que algumas destas estirpes possam ter sido as formas dominantes durante períodos em que as condições nos oceanos eram diferentes, nem que possam vir a ser dominantes num futuro mais ou menos próximo, se as coisas se alterarem. As bactérias e arquebactérias marinhas, com um número de estirpes agora inflacionado a qualquer coisa entre 5 a 10 milhões, representam cerca 90% da biomassa dos oceanos. Os mares da Terra pertencem de facto às bactérias.

Ficha técnica
Esta contribuição beneficiou das discussões no Deep Sea News.
O comunicado de imprensa do Censo da Vida Marinha, de onde retirei a imagem das bactérias que usei na composição no alto da contribuição, pode ser encontrado aqui.

Referências
(ref1) Mitchell L. Sogin, Hilary G. Morrison, Julie A. Huber, David Mark Welch, Susan M. Huse, Phillip R. Neal, Jesus M. Arrieta, and Gerhard J. Herndl (2006). Microbial diversity in the deep sea and the underexplored "rare biosphere". Proc. Natl. Acad. Sci. USA, Laço DOI

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