sexta-feira, março 10, 2006

A abominável lagosta das profundezas

Depois dos filhos do dragão de que falei anteriormente, apresento aqui uma criatura, também cega, mas que habita, não numa caverna, mas sim nas profundezas do mar. Trata-se de uma felpuda lagosta cujo nome científico é Kiwa hirsuta. O nome do género, Kiwa vem da deusa polinésia dos crustáceos, enquanto que o hirsuta é óbvio dado o aspecto cabeludo da criatura. A criatura foi observada nas fontes hidrotermais quentes associadas a fenómenos de natureza vulcânica nos fundos marinhos. Estas fontes hidrotermais fornecem compostos químicos que são utilizados como fonte de energia por bactérias, e são o suporte de comunidades que não necessitam da luz solar. [... ler mais]

Trata-se de uma descoberta recente, descrita por Enrique Macpherson e colegas num artigo (ref1) na revista Zoosystema, do Museu de História Natural de Paris, resultado de um estudo efectuado durante Março/Abril de 2005 liderado pelo cientista R. Vrijenhoek, ao longo de quatro fontes hidrotermais nas proximidades da ilha da Páscoa. Numa tradução livre de um extracto do artigo:

Em várias ocasiões, os cientistas que mergulharam no submarino Alvin a bordo do RV Atlantis observaram alguns crustáceos grandes (cerca de 15cm de comprimento), brancos, e peludos, e recolheram um deles. O exemplar pertence à superfamília Galatheoidea, um clã que inclui as famílias Galatheidae, Chirostylidae, Porcellanidae, e Aeglidae, mas que não encaixa nos limites morfológicos ou genéticos de qualquer uma dessas famílias. A extraordinária natureza setosa dos quelípedes e das pernas levou à adopção do nome caranguejo "Yeti".

O adjectivo "setoso" acima é porque aquilo que parecem pelos na lagosta são designados por setae, que eu designarei por setas no que se segue.


As imagens acima, retiradas do artigo, mostram exemplares vivos no fundo oceânico, no seu modo de vida tranquilo. Grande parte do artigo é dedicada à descrição detalhada da morfologia e análise molecular deste exemplar. Os resultados mostram que o animal é suficientemente distinto de outros animais conhecidos para merecer a sua própria família. A diferença mais óbvia é a densa cobertura de setas.

As setas existem em duas formas, uma flexível e uma rígida. A imagem acima, à esquerda, retirada do artigo na Zoosystema, mostra sobretudo setas flexíveis, mais finas, mas podem ver-se duas setas rígidas, bastante mais espessas no canto inferior esquerdo, e duas na direita mesmo por cima da barra preta que marca a escala. A barra preta corresponde a 3 milímetros. Na imagem com o G no canto superior esquerdo mostra-se o topo de uma das setas rígidas. Como se pode ver, a seta apresenta uma grande série de "bárbulas" de pequenas dimensões. Esta é uma imagem fortemente ampliada num microscópio electrónico. A barra branca que serve de escala corresponde nesta imagem a 100 micrómetros.

A função das setas é ainda desconhecida. Uma ampliação das setas flexíveis, que se mostra na imagem ao lado, também retirada do artigo, mostra uma grande quantidade de bactérias filamentosas que vivem agarradas às setas. Já agora, para se ter uma ideia da escala, a barra horizontal preta no canto inferior direito corresponde a 20 micrómetros. As setas rígidas não possuem bactérias. Ora qual a relação das bactérias com a lagosta? No final do artigo os autores referem:
A presença, nas pernas, de densas setas bacteriofóras colonizadas por tapetes de bactérias provavelmente sulfo-oxidizantes, torna possível encarar esta espécie como associada de forma obrigatória às fontes hidrotermais. Estas bactérias poderiam servir como fonte nutricional.

No entanto um pouco atrás os autores notavam:
Tal como outros crustáceos decápodes das fontes hidrotermais a Kiwa hirsuta é provavelmente um omnívoro. Alguns exemplares foram observados in situ a consumirem tecidos de mexilhões danificados pelas actividades de recolha do submersível.

Portanto talvez haja uma outra razão para as bactérias. No Deep-Sea News refere-se que outra possibilidade é que a função dessas bactérias seja eliminar materiais tóxicos provenientes da fontes hidrotermais. Enfim, só nos resta esperar por mais estudos destas fascinantes comunidades dos fundos marinhos.

Referências
(ref1) Enrique Macpherson, William Jones and Michel Segonzac (2005). A new squat lobster family of Galatheoidea (Crustacea, Decapoda, Anomura) from hydrothermal vents of the Pacific-Antarctic Ridge. Zoosystema 27(4):709-723

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