A Science desta semana tem um artigo interessante sobre dois velhos conhecidos nossos, o Anopheles e o Plasmodium, mas estou com pouco tempo para preparar um blog, pelo que a discussão desse artigo fica para a semana. Tenho contudo material de reserva sobre dois artigos mais antigos sobre esse tema, que introduzem um terceiro ingrediente biológico na equação: fungos, mais exactamente as espécies Beauveria bassiana e Metarhizium anisopliae. Quando um esporo de um destes fungos contacta com um mosquito o resultado é escabroso. O mosquito sofre uma morte lenta, que leva de 10 a 12 dias, sendo coberto por uma camada branca de aspecto peludo. [... ler mais]
O esforço de erradicação da malária tem passado em grande parte pela utilização de pesticidas químicos, que embora eficazes tem vindo a ter problemas pois os mosquitos têm desenvolvido resistência aos pesticidas utilizados. Métodos biológicos têm sido experimentados com algum sucesso para as larvas destes mosquitos, mas até recentemente não se tinha tentado implementar um controle biológico de mosquitos adultos. É aí que entram os fungos em questão. O primeiro artigo da Science de Junho de 2005 (ref1), é da autoria de Simon Blanford e colegas. Numa tradução livre do resumo:
Usando um modelo da malária de roedores, verificámos que a exposição a superfícies tratadas com fungos entomopatogénicos a seguir a uma refeição com sangue infectado reduzia o número de mosquitos capazes de transmitir malária por um factor de cerca de 80. A infecção pelo fungo, conseguida através de contacto com superfícies sólidas ou redes em durações dentro dos períodos típicos de descanso após alimentação, foi suficiente para causar mais de 90% de mortalidade. As taxas de mortalidade diárias aumentaram dramaticamente por volta do tempo de maturação do esporozoíto, e os mosquitos infectados mostraram propensão reduzida para sugar sangue. Aspersões residuais de biopesticidas fungais poderão substituir ou complementar pesticidas químicos para o controle da malária, em particular nas áreas com elevada resistência ao insecticida.
Infectar estes mosquitos é relativamente fácil, pois como todos sabemos, depois de se empaturreram com o nosso sangue os mosquitos têm a mania de pousarem nas paredes. Um dos resultados são as características manchas de sangue nas paredes quando nos decidimos vingar e esborrachá-los. Daí que baste pulverizar as superfícies com esporos destes fungos, mesmo em doses muito baixas. Eu coloquei o ênfase em dois benefícios extra que os autores do estudo notaram. O parasita da malária, o Plasmodium, tinha o seu desenvolvimento perturbado nos mosquitos infectados pelo fungo. Além disso os mosquitos infectados pelo fungo mostravam menor propensão a alimentarem-se, o que torna menos provável que adquiram o plasmódio. São estes aspectos que leva à redução por um factor de 80 na taxa de infecção. Embora o intervalo de 10 a 12 dias até à morte dos mosquitos pareça longo, é adequado para combater a malária. Isto porque o parasita da malária demora cerca de 14 dias a desenvolver-se da fase de gametonte no sangue que o mosquito ingeriu, até à fase infecciosa para os seres humanos, o esporozoíto, que vive nas glândulas salivares do mosquito.
Neste primeiro artigo foi estudado o mosquito Anopheles stephensi, que é o vector envolvido na transmissão da malária dos ratos, causada pelo Plasmodium chabaudi. O efeito sobre o nosso velho conhecido Anopheles gambiae, que transmite ao homem o Plasmodium falciparum, é estudado no mesmo número da Science num artigo (ref2) de Ernst-Jan Scholte e colegas. Numa tradução livre do resumo:
O controlo biológico de mosquitos da malária em África tem sido usado raramente em programas de controlo de vectores. Desenvolvimentos recentes neste ramo mostram que certos fungos são virulentos para mosquitos Anopheles adultos. A pulverização de forma práctica de um fungo entomopatogénico que infectou e matou Anopheles gambiae adultos, o principal vector da malária em África, foi conseguida em casas rurais africanas. Um modelo de inoculação entomológico sugere que a implementação deste método de controlo do vector, mesmo com a cobertura moderada observada durante um estudo de campo na Tânzania, iria reduzir a intensidade de transmissão da malária de forma significativa.O estudo tem duas partes. Na primeira os autores verificaram que em cinco casas em que colocaram fungos durante 5 semanas, cerca de 23% dos mosquitos fêmeas foram infectadas pelo fungo. Com base num modelo matemático verificaram que isso significaria que num ano o número de picadas potencialmente infecciosas por aldeão baixaria de 262 em média para 64. Os números poderiam baixar para qualquer coisa em torno de uma picada por ano, valor necessário para realmente combater a malária, se se procedesse à pulverização de paredes inteiras em todas as casas da aldeia. E nestes cálculos não entraram em conta com os efeitos sobre os mosquitos infestados pelo plasmódio discutidos no artigo de Blanford e colegas.
Os fungos são particularmente interessantes pois não se conhecem casos em que os insectos tenham desenvolvido resistência a este tipo de agentes. Por outro lado a infecção é muito simples, o menor contacto de um esporo de um fungo com a pata de um mosquito é suficiente para despoletar a infecção, não sendo necessário ingeri-los. Estes dois estudos abrem possibilidades interessantes, quer pela utilização do fungo como agente principal, quer combinado com pesticidas químicos, pois é pouco provável que os mosquitos consigam desenvolver resistência a ambos. Qualquer passo no combate a uma doença que mata uma criança africana a cada 30 segundos é importante, e voltarei a este tema após o feriado do dia 1 de Maio.
Referências
(ref1) Simon Blanford, Brian H. K. Chan, Nina Jenkins, Derek Sim, Ruth J. Turner, Andrew F. Read, Matt B. Thomas (2005). Fungal Pathogen Reduces Potential for Malaria Transmission. Science, Vol. 308. no. 5728, pp. 1638 - 1641. Laço DOI
(ref2) Ernst-Jan Scholte, Kija Ng'habi, Japheth Kihonda, Willem Takken, Krijn Paaijmans, Salim Abdulla, Gerry F. Killeen, Bart G. J. Knols (2005). An Entomopathogenic Fungus for Control of Adult African Malaria Mosquitoes. Science, Vol. 308. no. 5728, pp. 1641 - 1642. Laço DOI