quarta-feira, fevereiro 28, 2007

Um abraço nem sempre é ternurento, nem sempre significa amor

Un abbraccio lungo seimila anni é assim que o Corriere della Sera se refere à descoberta, numa escavação arqueológica em Valdaro nos arrabaldes de Mântua, de dois esqueletos humanos face a face e que parecem abraçar-se um ao outro. O par morreu há cinco a seis mil anos e foi baptizado de «gli amanti di Valdaro». Um dos blogues do Roda, o Caminhos do Conhecimento inclui mesmo o poema «Noivado do Sepulcro» de Soares dos Passos a acompanhar a imagem do falecido par. Não sei se por feitio, mas quando vi a fotografia a primeira coisa que me ocorreu foi algo bastante mais sinistro, pensei em religião. [... ler mais]

A descoberta foi feita por um grupo de arqueólogos liderado pela superintendente da arqueologia da Lobardia, Elena Menotti, que se revelaram algo emocionados com o que encontraram. Os dois "amantes" parecem ser jovens: possuem todos os dentes em perfeitas condições. Mas para já há poucas certezas quanto às circunstâncias das suas mortes, e até se de facto se trata de um homem e de uma mulher. Ora por que razão me ocorreu a religião?

Os "amantes" são esqueletos de pessoas que viveram em pleno neolítico no que é agora a Itália. É com os agricultores do neolítico que o sentimento religioso, de certa forma patente milhares de anos antes na arte rupestre, atinge foros de epidemia, com monumentos de pedra que vão da Península Ibérica até Java. Mas essa religião deveria ser muito diferente do emaranhado filosófico-moral que caracteriza a religão moderna. Seria dominada sobretudo pelo medo e com uma grande componente de adivinhação e magia. As angústias do agricultor neolítico são muitas: que falhem as colheitas, que possa ser roubado, que algum mau espírito o arruine. Não sei se existe de facto o tal gene de Deus, a que se referiu o Osame do SEMCIÊNCIA nesta sua contribuição, mas se existe é muito provavelmente um gene do medo. No seu pânico o camponês do neolítico não hesita em recorrer aos sacrifícios humanos. Esta foi a primeira coisa que me ocorreu quando vi o par de esqueletos abraçados: um sacrifício para fazer germinar o trigo.

Pode parecer algo estranho mas a ideia de uma divindade benevolente é algo recente. Muito pouco se conhece sobre as tradições do neolítico, mas a religião de uma das primeiras civilizações urbanas, a dos sumérios, é bem conhecida. Cerca de mil a dois mil anos depois da morte do par que produziu os esqueletos abraçados, chega-nos um relato da consideração que as divindades sumérias nutriam pelos humanos. É a história que Utnapisthim descreve a Gilgamesh, num épico escrito há mais de quatro mil anos:

Naqueles dias o mundo pululava, o povo multiplicava-se, o mundo mugia como um touro selvagem e o grande deus foi despertado pelo clamor. Enlil ouviu o clamor e disse aos deuses reunidos em conselho: «O tumulto da humanidade é intolerável e já não é possível dormir com esta confusão.» E assim os deuses concordaram em exterminar a humanidade.

O resultado é o dilúvio na sua variante suméria, com seis dias e seis noites de tempestade, durante os quais os homens, «como a ova do peixe, flutuam no oceano.». Ao despontar do sétimo dia «havia silêncio: toda a humanidade se transformara em barro». Nem toda: Utnapishtim e os seus, avisados em sonhos pelo deus Ea, escaparam numa embarcação calefetada com betume. Ficamos então a saber porque razão os deuses toleram os humanos. Quando algumas aves que largou não voltaram Utnapishtim percebeu que as águas tinham recuado e:
Então abri tudo aos quatro ventos, fiz um sacrifício e derramei uma libação no alto da montanha. Sete e mais sete caldeirões coloquei nos seus suportes, empilhei madeira e juncos, e cedro e mirto. Quando os deuses sentiram este suave odor, juntaram-se como moscas sobre o sacrifício.

Utnapisthim fez um sacrifício animal. A invenção do clero conduziu em muitas das primeiras civilizações urbanas ao fim dos sacrifícios humanos. Os sumérios viviam numa época em que os sacerdotes tinham descoberto que os deuses e os mortos (e os sacerdotes claro) eram grandes apreciadores de cordeiros e cabritos.

Por ter relembrado aos deuses a importância dos sacrifícios Utnapishtim recebeu como recompensa a imortalidade. Foi em busca dessa imortalidade que Gilgamesh o procurou:
Por causa do meu irmão eu temo a morte, por causa do meu irmão vagueio pelo deserto. A sua sorte pesa sobre mim. Como posso eu ficar silencioso, como posso descansar? Ele tornou-se pó e também eu morrerei e me deitarei na terra para sempre.

Notem que estas frases foram traduzidas de outras com mais de quatro mil anos. Os proprietários do neolítico, que viveram uns poucos milhares de anos antes destas palavras serem escritas, não tinham medo apenas do que lhes aconteceria em vida, preocupavam-se também com o que lhes aconteceria depois de mortos. Em vida esses homens não se apoderaram apenas das terras, apropriaram-se das mulheres e dos filhos, e inventaram a escravatura. Os sacrifícios humanos nem sempre estivam ligados às sementeiras, muitas vezes estavam relacionados a aspectos do além túmulo. Quando vi referido que os cadávares eram acompanhados por pontas de seta e uma faca troquei a ideia de um sacrifício para as colheitas por algo não menos sinistro: uma esposa ou escrava sacrificada para acompanhar um defunto razoavelmente importante.

Angústias à parte, pelos menos na Suméria de quatro mil anos atrás, os seres humanos não seriam muito diferentes de nós. Nas palavras de Siduri, uma jovem mulher que Gilgamesh encontra enquanto procura Utnapishtim:
Gilgamesh, para onde vai a tua pressa? Nunca encontrarás essa vida que procuras. Quando os deuses criaram o homem, atrbuíram-lhe a morte: mas a vida essa ficou para eles. Quanto a ti, Gilgamesh enche a barriga de coisas boas: de dia e de noite, de noite e de dia, dá-te a danças e alegrias, a festas e a júbilos. Que as tuas roupas sejam novas, banha-te na água, acarinha o menino que te pega na mão e torna feliz tua mulher no teu abraço; porque também isso cabe ao homem.

Esta ideia de felicidade é perfeitamente actual, apesar de ter mais de quatro mil anos. Quem sabe, talvez os amantes de Mântua escondam de facto apenas uma história de amor que terá terminado com algum acidente infeliz ou doença.

O Gilgamesh (prefiro Gilgamexe mas os tradutores foram pela grafia inglesa) é um livro fantástico que se lê bem nos nossos dias, e sob muitos aspectos tocante. Um outro legado sumério menos edificante é no entanto bastante mais popular: um dos resquícios que ainda se encontra nos nossos dias da religião suméria é a astrologia.

Ficha técnica
Os direitos autorais da imagem são pertença da SAP Società Archeologica Professionale, onse se pode encontrar mais informação sobre «gli amanti di Valdaro».

Referências
Gilgamesh, versão de Pedro Tamen do texto inglês de N. K. Sandars. Editora VEGA.

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