"Eu não evoluí do Rapaz de Turkana nem de nada semelhante a ele," diz o Bispo Boniface Adoyo, que comanda 35 denominações evangélicas, que ele diz possuirem 10 milhões de seguidores. "Esse tipo de opiniões idiotas estão a matar a nossa fé."
O tema do mês na roda de ciência é Ciência e Religião, e eu não resisti a incluir esta citação de um artigo da AP relativamente a movimentações que se fazem no Quénia contra uma exposição de vestígios fósseis de antepassados humanos. A posição do Bispo Adoyo ilustra bem o que está em jogo, qualquer tipo de religião com componentes naturalistas, isto é de explicação de como o mundo veio a ser e funciona, tem o potencial de entrar em colisão com as explicações científicas. No caso das correntes cristãs que interpretam literalmente a Bíblia o pomo da discórdia é o Génesis que afirma que o homem foi criado tal como é, e que estabelece um intervalo temporal para a existência do mundo de uns poucos milhares de anos. Nas religiões da antiguidade este aspecto naturalista da religião era ainda mais patente, com deuses para cada um dos fenómenos da natureza: trovões, chuva, Sol, rios, colheitas. Este tipo de preocupações acompanham os seres humanos há muito tempo. [... ler mais]
As pinturas rupestres são mais que um reviver de caçadas passadas, são provavelmente também um invocar dos animais e uma tentativa de controlar o seu comportamento. As figurinhas das "Vénus" indicam provavelmente uma tentativa de influenciar a fecundidade humana. Para além destas preocupações com o mundo natural os seres humanos dessa época enterravam também os seus mortos de uma forma que mostra preocupações com a existência além túmulo. Evidência deste tipo não existe, ou é controversa, para os humanos arcaicos, como os nandertais ou as várias populações de erectus que foram substuídas pelos humanos anatomicamente modernos. Ausência de evidência nem sempre é evidência de ausência, pois as formas de representação utilizadas pelos humanos arcaicos poderiam utilizar materiais perecíveis. Além disso, muitos grupos humanos modernos não deixaram esse tipo de evidências apesar de possuirem esse tipo de sistemas de valores. É claro que podemos indagar sempre se os seres humanos arcaicos possuiriam o tipo de capacidades mentais que permitem o tipo de pensamento abstracto que nos leva a querer influenciar a natureza. O mais óbvio é a linguagem. Quando é que os seres humanos começaram a falar? Como é que se responde a essa questão quando tudo o que se tem são alguns ossos e uns quantos utensílios de pedra?
Essa não é uma questão fácil de responder, e é aqui que vou voltar ao Rapaz de Turkana que tanta angústia causa ao Bispo Adoyo. A imagem ao lado mostra o esqueleto catalogado com a referência KNM-WT 15000, Foi descoberto em 1984 por Kamoya Kimeu em Nariokotome, próximo ao Lago Turkana no Quénia. Trata-se de um esqueleto fabulosamente completo de um Homo erectus, que terá vivido há mais de 1 milhão e meio de anos atrás. Faltam apenas os ossos das mãos e pés para ficarmos a saber como o esqueleto completo seria. O indivíduo a que pertencia este esqueleto, do sexo masculino, teria cerca de 1 metro e 60 centímetros em vida, e ainda estava a crescer. A análise das suturas dos ossos do crânio revelou que se trata do esqueleto de uma criança, que teria cerca de 11 a 12 anos admitindo um padrão de desenvolvimento semelhante ao nosso, talvez apenas 9 anos se o erectus amadurecesse mais depressa. Estima-se que se tivesse chegado a adulto atingiria uma altura por volta de 1 metro e 85 centímetros. O esqueleto é moderno na aparência e as diferenças abaixo do crânio são relativamente pequenas. O crânio é no entanto bastante menor que o dos seres humanos actuais, cerca de 880 centímetros cúbicos, estimando-se que em adulto teria cerca de 910 centímetros cúbicos. Este valor é bastante inferior ao dos seres humanos modernos, que em média possuem uma capacidade craniana de 1350 centímetros cúbicos.
Um dos livros que discute aprofundadamente este esqueleto é o "The Wisdom of Bones" de Walker e Shipman (ref1). Há dois aspectos relativos ao esqueleto que os autores discutem em relação com as capacidades vocais do Rapaz de Turkana. O primeiro é a área de Broca, que deixa uma protuberância que existe no crânio dos seres humanos modernos que pode ser detectada nos fósseis. Os grandes símios e os australopitecos não mostram esta marca da área de Broca. Os fósseis humanos a começar com o Homo habilis 1.9 milhões de anos atrás mostram essa marca. Como discutem Walker e Shipman, a área de Broca só por si não é no entanto indicadora de linguagem, a marca no crânio provém duma região que controla algumas capacidades motoras da fala, mas as regiões que controlam de facto o discurso estendem-se muito para além.
O aspecto mais revelador do fóssil, no que se refere ao discurso, do Rapaz de Turkana parecem ser no entanto as suas vértebras. Estas são muito diferentes das vértebras dos seres humanos modernos numa característica: têm apenas metade da secção que as vértebras de humanos modernos com tamanho semelhante apresentam. No "The Wisdom of Bones" Walker e Shipman discutem o significado dessa característica com base no trabalho de Ann Maclarnon:A Ann tinha também descobrido que a diferença principal entre os humanos e os outros primatas era um alargamento da corda espinal na região que controla a base do pescoço, os braços, e o tórax, que, fortuitamente, era a região mais bem conservada nos restos do rapaz. Ann confirmou que a corda espinal do rapaz era genuinamente pequena na região toráxica, tal como eu tinha suspeitado. A questão que pairava era então o porquê, porque é que os humanos desenvolveram esta expansão única e o que implicava acerca do comportamento do rapaz o facto de ele não possuir uma expansão de tipo humano.
Ann Maclarnon, com base em trabalho cuidadosa de dissecação de cadáveres de primatas humanos e não humanos, descobriu o motivo do alargamento existente nos humanos modernos. Não se destina a controlar os braços, mas sim a assegurar o controlo nervoso da caixa toráxica e do abdómen. Ora e para que necessitam os seres humanos de um tal controle? Ainda segundo Walker e Shipman:A Ann ofereceu também uma explicação alternativa. Ela escreveu, "Eu dei um seminário no meu departamento cobrindo bastantes coisas dos meus trabalhos sobre a corda espinal, e as análises que tinha feito até então no WT 15000 so far' . 'Uma colega, Gwen Hewitt, sugeriu que o aumento na inervação nos humanos modernos poderia resultar do maior controlo associado com a evolução da fala." Noutras palavras, as células nervosas extra controlovam os músculos intercostais e abdominais do tórax.
A sugestão de Walker e Shipman é então que o Rapaz de Turkana não possuia capacidades vocais condizentes com um discurso falado semelhante ao nosso. É assim muito possível que não possuísse o tipo de pensamento abstracto que lhe permitisse discorrer sobre temas como a religião e o que haverá para lá da morte. Pelo menos não como o Bispo Boniface Adoyo. Ainda do comunicado da AP:Ele está a incitar o seu rebanho a que boicotem a exibição e exigiu que o museu relegue a colecção de fósseis para uma sala nas traseiras -- juntamente com uma nota dizendo que a evolução não é um facto mas apenas uma entre várias teorias.
O que é realmente inquietante na história não é a sede de protagonismo do Bispo, é o desperdício de recursos a que obriga. A possibilidade, ainda que remota, que algum tipo de vandalismo obriga a gastos maiores em despesas de segurança e em seguros.
Ficha técnica
Walker, A. and P. Shipman (1996). The Wisdom of Bones: In Search of Human Origins. New York: Alfred Knopf, 1996
COMENTÁRIOS VIA RODA DE CIÊNCIA
domingo, fevereiro 11, 2007
A religião do Rapaz de Turkana
Por CDG laço permanente
Etiquetas: Roda de Ciência