segunda-feira, fevereiro 27, 2006

Não apenas deliciosa mas também bonita

A mais nobre das criaturas aquáticas, a ilustre lampreia, não é apenas uma iguaria gastronómica sem rival, é também importante pelo vislumbre que nos fornece da história dos vertebrados. Os "peixes verdadeiros" possuem uma boca com mandíbulas, mas os antepassados dos peixes actuais, até há cerca de 500 milhões de anos atrás, não eram capazes de morder, e as lampreias mostram ainda essa condição ancestral. As lampreias apresentam como boca uma espécie de ventosa coberta coberta de dentes, com que se agarram à carne dos peixes, aos quais chupam o sangue. As diferenças das lampreias em relação aos peixes não se esgotam na boca, existe um vasto reportório de características fisiológicas e morfológicas que separam ambas as categorias de vertebrados. Entre algumas peculiaridades da lampreia estão um sistema imunitário completamente diferente do nosso, e uma grande tolerância ao ferro. [... ler mais]

As lampreias não são o único grupo de peixes sem mandíbulas, as mixinas ou enguias de casulo também não as possuem. Em vez de maxilares que se articulam verticalmente como os nossos, as mixinas possuem duas estruturas que se articulam horizontalmente para puxarem comida. Uma imagem destas simpáticas criaturas, caracterizadas por tentáculos próximos da boca, mostra-se aqui ao lado. Originalmente, as mixinas e as lampreias eram incluídas num grupo designado Cyclostomi (ciclóstomos). Contudo, há relativamente pouco tempo, alguns investigadores favoreceram a hipótese de que as lampreias possuíam um antepassado comum mais recente em relação aos peixes com mandíbulas, os chamados Gnathostomata (gnatóstomos), que em relação às mixinas. A relação entre os três grupos mantêm-se no entanto algo incerta pois trabalhos recentes com ADN mitocondrial (ref2) sugerem que as mixinas e as lampreias estão afinal mais próximas umas das outras que dos gnatóstomos, e a tendência actual é incluir quer as mixinas quer as lampreias nos vertebrados.

As lampreias possuem numa das suas extremidades uma cabeça sustentada por cartilagem, e não possuem ossos. Grande parte dos problemas em colocar a lampreia entre os vertebrados tinha a ver com as supostas peculiaridades do esqueleto da lampreia, que se supunha ser bastante diferente do dos restantes vertebrados e ter evoluído separadamente. Em particular supunha-se que a cartilagem da lampreia era diferente da cartilagem dos restantes vertebrados que se baseia em colagénio. Quando se fala em colagénio, a maioria das pessoas pensa imediatamente nos lábios das estrelas de cinema mas o colagénio tem um papel vital no desenvolvimento do esqueleto dos seres humanos. O colagénio é uma estrutura proteica longa e fina que se encontra sobre a forma de feixes de fibras brancas, que apesar de flexíveis são muito resistentes à tracção. Na verdade a maioria das pessoas conhece muito bem o colagénio, pois quando aquecidas a temperaturas elevadas e arrefecidas em seguida estas fibras transformam-se em gelatina. Uma variante do colagénio, o colagénio de tipo II, é nos seres humanos e restantes vertebrados com mandíbulas, a fibra da cartilagem, que é não só um tecido de sustentação em si mesma mas é também uma etapa do crescimento do tecido ósseo.

Pensava-se que o colagénio de tipo II era uma invenção relativamente recente que unia grupos de vertebrados como répteis, anfíbios, tubarões e peixes com esqueleto ósseo, e os separava de vertebrados mais "primitivos" como a lampreia, cujo esqueleto seria baseado numa proteína diferente. De acordo com um artigo (ref1) publicado por GuangJun Zhang e colegas no Proceedings of the National Academy of Sciences as coisas não são bem assim. Apesar das centenas de milhões de anos de evolução que separam a lampreia da quase totalidade dos outros vertebrados, os genes que governam o desenvolvimento do seu esqueleto são os mesmos. Numa tradução livre do resumo:

O colagénio de tipo II é a mais importante proteína da matriz da cartilagem no esqueleto dos vertebrados com mandíbulas. Pelo contrário, pensava-se que as lampreias e as mixinas possuíam uma cartilagem não-colagénica. Esta diferença na estrutura do esqueleto levou à hipótese que o antepassado comum aos vertebrados tinha um esqueleto não colagénico, com o colagénio de tipo II tornando-se a proteína dominante da matriz da cartilagem após a divergência entre os peixes sem mandíbulas dos peixes com mandíbulas há aproximadamente 500 milhões de anos atrás. Aqui mostramos que as lampreias têm dois genes de colagénio de tipo II (Col2α1) que se expressam durante o desenvolvimento do esqueleto cartilagíneo. Mostramos também que o esqueleto da lampreia adulta é rico na proteína Col2α1. Para além disso, isolámos um ortólogo da lampreia do Sox9, um regulador directo transcripcional de Col2α1 nos vertebrados com mandíbulas, e mostramos que se expressa com ambos os genes Col2α1 durante o desenvolvimento do esqueleto. Estes resultados mostram que o percurso genético para a condrogénese em lampreias e gnatóstomos é conservado durante a activação das moléculas da matriz cartilagínea e sugerem que um esqueleto com colagénio evoluiu supreendentemente cedo na evolução dos vertebrados.
Ou seja, a equipa de investigação usou técnicas de sequenciação de genes para mostrar que dois genes do colagénio de tipo II se expressam durante o desenvolvimento do esqueleto cartilaginoso da lampreia. Conseguiram ainda isolar um gene chamado Sox9, que regula a actividade do genes do colagénio nos gnastótomos. As implicações são simples: um esqueleto baseado no colagénio evoluiu antes do aparecimento dos gnastótomos, e antes que os antepassados das lampreias se tivessem separado destes. O resultado pode não parecer tão importante como isso mas é. Este estudo mostra que a característica comum dos vertebrados não é a presença ou ausência de tecido ósseo, mas sim partilharem um conjunto de genes que produz cartilagem.

Para finalizar nada melhor que uma imagem dos arquivos da EPA mostrando uma pobre truta a ser atacada por duas lampreias famintas.


Referências:

(ref1) GuangJun Zhang, Michael M. Miyamoto, and Martin J. Cohn (2006). Lamprey type II collagen and Sox9 reveal an ancient origin of the vertebrate collagenous skeleton. Proc. Natl. Acad. Sci. USA. doi: 10.1073/pnas.0508313103

(ref2) Delarbre et al (2002). Complete Mitochondrial DNA of the Hagfish, Eptatretus burgeri: The Comparative Analysis of Mitochondrial DNA Sequences Strongly Supports the Cyclostome Monophyly. Molecular Phylogenetics and Evolution 22 (2): 184-192.

Adenda: PZ Myers tem uma contribuição sobre este tema (em inglês), com imagens do artigo original, algo que eu em geral evito pois excepto pela PLoS biology a maioria das publicações não são livres e levam muito a sério os direitos de autor.

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