segunda-feira, outubro 02, 2006

Quando o magma sobe pelas fissuras

Uma das coisas que me impressiona mais nas geociências é a capacidade de saber o que se encontra bem abaixo dos nossos pés, no interior da Terra. O vulcanismo é um dos fenómenos que nos permite esse tipo de conhecimento. Os materiais vulcânicos são uma das poucas fontes de informação directa sobre as condições existentes a grandes profundidades, em geral inacessível de outras formas. Isso sucede porque materiais arrastados ao longo do tubo de lava aparecem como inclusões nas rochas que se formam como resultado dos fenómenos vulcânicos. Essas inclusões vão desde fragmentos de rochas (xenólitos) a cristais indivíduais (xenocristais). Alguns exemplos de inclusões são bem visíveis na lava basáltica que se mostra na imagem, e que foi recolhida ao largo da Fossa do Japão. Ora este simples bocado de lava surprendeu os cientistas pois os dados de uma análise detalhada sugerem um mecanismo de formação de vulcões bastante diferente dos mecanismos que se admitiam até agora. [... ler mais]

Antes de passar ao estudo deste bocado de rocha tenho que abrir um pequeno parêntesis para introduzir o tema. Aqueles que leram a contribuição sobre a tomografia da região abaixo do Etna lembram-se que os mapas do que está abaixo da superfície eram feitos usando a velocidade das ondas sísmicas, que variam consoante o material atravessado, em particular se se trata de material sólido ou fundido. Foi o estudo dessas ondas sísmicas que permitiu identificar uma mudança nas propriedades de propagação alguns km abaixo da superfície, na transição da crosta para o manto. Esses estudos permitiram também descobrir que a camada do manto abaixo da crosta, até profundidades de muitas dezenas de km, é sólida e algo quebradiça, sujeita a fracturas. A crosta e esta camada do manto formam aquilo que se designa por litosfera, que cobre a superfície da Terra, e que está partida numa série de fragmentos, as placas tectónica. Abaixo da litosfera, existe uma zona, designada por astenosfera, onde o material tem uma consistência mais plástica, embora não esteja exactamente derretido, pois as ondas sísmicas de cisalhamento (ondas S) que não se propagam em fluídos propagam-se aí. A velocidade dessas ondas é contudo muito baixa, o que levou alguns autores a admitir que uma pequena fracção do material da astenosfera poderá de facto estar fundido, embora esta hipótese tenha sido questionada nalguns trabalhos recentes. Terminado o parêntesis posso então voltar ao fragmento de lava acima. A origem desse material são pequenos vulcões submarinos, com menos de 1km cúbico de material rochoso, as cercanias dos quais se mostram nas imagens abaixo, recolhidas por um veículo submersível.

O que se está a ver são "almofadas de lava" com diâmetros de 30-50 cm, e pequenos calhaus resultantes do contacto explosivo de material aquecido com a água, de 4-6 cm de diâmetro, espalhados ao longo do cume do vulcão, que se encontra parcialmente coberto por sedimentos. Os cientistas ficaram um pouco surpreendidos quando observaram estes afloramentos rochosos pois não esperavam encontrar vulcões ali. O estudo detalhado destas rochas foi publicado recentemente na revista Nature (ref1) num artigo da autoria de Naoto Hirano e colegas. Numa tradução livre do resumo:

Sabe-se que o vulcanismo na Terra ocorre em três cenários tectónicos: bordas de placas divergentes (tais como cordilheiras nos oceanos), bordas de placas convergentes (tais como arcos de ilhas), e pontos quentes.

A maioria dos vulcões ocorre na fronteira entre placas tectónicas. Os vulcões dos "pontos-quentes" que ocorrem no meio das placas tectónicas são mais raros. Segundo a hipótese que procura explicar esse fenómeno, em certos locais do manto, magma mais quente das profundezas seria, por acção de um mecanismo em grande parte desconhecido, empurrado num movimento ascendente, e como que fundiria a placa acima, sendo transportado até próximo da superfície. Como as placas tectónicas se deslocariam sobre essas "plumas do manto", razoavelmente fixas, o resultado desse movimento seriam cadeias de vulcões, como as do Havai. Os pequenos vulcões recém-descobertos localizam-se no meio de uma placa tectónica mas não se enquadram na categoria dos vulcões dos pontos quentes.
Relatamos vulcanismo na Placa do Pacífico com 135 milhões de anos que não pertence a nenhuma dessas categorias. Pequenos vulcões alcalinos formam-se de pequenas percentagens de material fundido na astenosfera, como indicado pela sua geoquímica de elementos residuais e composição isotópica de gases nobres. Propomos que estes pequenos vulcões entra em erupção ao longo de fracturas na litosféricas em resposta à flexão da placa durante a subducção. Quantidades diminutas de fusão astenosférica e o alinhamento tectónico dos vulcões e a progressão em idade na direcção oposta ao do movimento da placa fornecem evidência para a presença de uma pequena percentagem de fusão na astenosfera.

O resumo é algo curto, e este artigo justifica que eu fale um pouco mais, em particular para que se possa compreender bem que os valores da idade e proveniência do material não surgem como que por magia. Os 135 milhões de anos são a idade da Placa do Pacífico na região da Fossa do Japão. A placa tectónica que os autores estudaram desloca-se qualquer coisa como 100 km a cada milhão de anos. Os pequenos vulcões são um fenómeno geológico bastante mais jovem que o fundo oceânico onde são transportados. Os mais próximos da Fossa do Japão, naquilo que os autores designam por local A, têm de 4.23± 0.19 a 8.5 ± 0.18 milhões de anos. A idade desses vulcões foi calculada através do estudo do decaimento de materiais radioactivos, usando o quociente entre o 40Ar e o 39Ar (Ar é o símbolo químico do árgon).

Os basaltos das "almofadas" recolhidas no local B, a cerca de 600 km do local A, possuem uma faixa de palagonite com uma espessura de 4 mm (está indicada na imagem no topo da contribuição). Os autores recorreram a essa faixa de palagonite para datar os basaltos, um método de datação que eu não conhecia. A lava submetida à acção da água sofre um arrefecimento brusco, formando um vidro que recobre a "almofada" de basalto. Ao longo do tempo, esse vidro sofre a acção hidratante da água, num processo de evolução estrutural e química que leva à formação de um mineral amarelado, a palagonite. A palagonite forma-se apenas dentro de água, e andou há uns tempos nas bocas do mundo por ter sido identificada em Marte, o que seria uma indício claro da existência de água no estado líquido. A palagonitização do vidro vulcânico exposto à água do mar não é rápida, pelo menos à escala humana, mas sim um processo contínuo de dissolução do vidro, formação de palagonite, e evolução dessa mesma palagonite. A taxa de crescimento é de ~0.003 a 0.02 mm por ano, logo 4 mm significam uma idade que pode ir de 50,000 anos a pouco mais de 1 milhão de anos para as lavas associadas. Ou seja, os vulcões mais afastados da Fossa do Japão são bastante mais jovens que os próximos da Fossa do Japão. A diferença de idade entre os dois locais é comparável ao tempo que a placa tectónica demora a percorrer os 600 km de distância entre os dois locais (cerca de 6 milhões de anos).

Segundo os autores do artigo os vários xenólitos e xenocristais incluídos nos basaltos fornecem alguns constrangimentos importantes quanto à origem das lavas:
  1. A ascensão do material teve que ser muito rápida para evitar que os xenólitos fossem absorvidos pelo magma circundante.
  2. Os magmas possivelmente originaram-se no manto pois contêm xenólitos representativos de todos os níveis da litosfera.
  3. Tiveram que ocorrer fracturas quebradiças na litosfera para que o material pudesse ascender.
  4. A ocorrência e a geoquímica dos xenocristais de olivina indica uma origem na litosfera a profundidades de ~14 km (a crosta oceânica tem nesse local de 7 a 8 km).
Também segundo os autores, a lava mostra uma composição que sugere que se teria formado a profundidades superiores a 90 km. A Placa do Pacífico nesta região tem uma espessura de cerca de 95 km, o que indica que o magma provém de material fundido com origem na astenosfera. Por outro lado, os isótopos de gases raros presentes na lava mostram claramente que o material não teve origem nas camadas profundas do manto, como seria de esperar para o caso de vulcões de ponto quente, com origem numa pluma do manto. O esquema que os autores advogam é o seguinte:

Os autores sugerem que a presença de materiais voláteis (essencialmente CO2) permite que exista uma pequena fracção de material fundido na astenosfera. Ainda segundo os autores, a subducção na Fossa do Japão leva a uma flexão da placa tectónica, que adopta uma forma convexa, com uma elevação de cerca de 800 metros acima do nível médio do fundo oceânico. A curvatura imposta na litosfera poderá então provocar algumas fracturas, permitindo que o material fundido da astenosfera suba e arraste os xenólitos litosféricos.

É óbvio que todos os comunicados de imprensa e mesmo a descrição na Science que acompanha este artigo, procuram um certo sensacionalismo, e falam logo em colocar em causa o mecanismo das plumas do manto. O artigo não vai tão longe, o que mostra mais uma vez o perigo de interpretar as descobertas científicas recorrendo a comunicados de imprensa. Os autores referem apenas que se trata de um outro mecanismo capaz de originar vulcões longe das bordas das placas tectónicas, e fornecem uma lista de outros locais semelhantes. Na verdade aquilo que os autores salientam com particular ênfase nas conclusões é a presença de material fundido na astenosfera, algo que tinha sido questionado recentemente.

Referências
(ref1) Naoto Hirano, Eiichi Takahashi, Junji Yamamoto, Natsue Abe, Stephanie P. Ingle, Ichiro Kaneoka, Takafumi Hirata, Jun-Ichi Kimura, Teruaki Ishii, Yujiro Ogawa, Shiki Machida, and Kiyoshi Suyehiro (2006). Volcanism in Response to Plate Flexure. Science Vol. 313. no. 5792, pp. 1426 - 1428. Laço DOI.

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