segunda-feira, dezembro 08, 2008

O sentimento de injustiça canina

Esta imagem, que mostra um gesto aparentemente banal, um cachorro a dar a pata a um ser humano, é parte de um estudo científico muito interessante sobre o comportamento canino. Um estudo que se debruçou sobre a inveja e sentimentos de injustiça. Este cachorro vai ser confrontado com um tratamento desigual relativamente ao seu parceiro da fotografia. Os donos de cães tendem a afirmar que aos seus animais só lhes falta falar e atribuem-lhes um certo número de estados de espírito "humanos." Um dos mais óbvios é o ciúme, despoletado pela chegada de um outro cão (ou de uma criança) no agregado familiar. Este estudo recente mostra que os cães são capazes de sentimentos mais subtis, e que são sensíveis a situações em que a trabalho igual correspondem recompensas distintas, isto é, os cães distinguem quando são vítimas de injustiça. [... ler mais]

O estudo que indaga de que forma os cachorros reagem a desigualdades na recompensa dada a uma mesma tarefa é da autoria de Friederike Range e aguarda publicação na revista Proceedings of the National Academy of Sciences (ref1). Numa tradução livre do resumo:

Um elemento crucial na evolução da cooperação pode ter sido a sensibilidade aos esforços e recompensas dos outros quando comparados com os custos e ganhos próprios. Pensa-se que aversão à desigualdade seja a força que torna o castigo não-egoísta nos seres humanos um instrumento poderoso para impôr a cooperação.

O "castigo não-egoísta" é algo que nos leva por vezes a dispender um esforço maior para corrigir uma situação de injustiça do que aquilo que ganharíamos caso a tal situação não ocorresse. Os seres humanos são capazes de ir a extremos para castigar os indivíduos que identificam como batoteiros e aproveitadores.
Pesquisa recente mostra que primatas não humanos se recusam a participar em tarefas cooperativas de resolução de problemas se notam que um congénere obtém, para o mesmo esforço, uma recompensa mais apetecível. Contudo, pouco se sabe sobre espécies de não primatas, embora a aversão à desigualdade também seja esperada noutras espécies cooperativas. Investigamos aqui se os cães domésticos mostram sensibilidade no que se refere à desigualdade das recompensas recebidas ao darem a pata a um investigador encarregado de pares de cachorros.

A experiência efectuada era bastante simples. A fotografia no topo da contribuição ilustra um dos passos, mostrando dois cachorros, com o dono em pé por trás. Um deles está a dar a pata à investigadora, não recebendo nada por isso. O outro cachorro também deu a pata, mas recebeu uma recompensa :

Notem o olhar atento do primeiro cachorro ao ver o segundo a levar uma guloseima. Ora o primeiro cachorro não tinha levado nada, e após uma quantas vezes desta coisa repetida o resultado foi este:

O cachorro pura e simplesmente recusa-se a dar a pata, e nem sequer olha para a investigadora. Deve notar-se que, quando sem parceiro, o cachorro continua a dar a pata durante muito tempo, mesmo que não receba comida. Os autores do artigo concluem então:
Encontrámos diferenças nos cachorros testados sem recompensa de comida na presença de de um parceiro recompensado quando comparado com a situação base (ambos os parceiros recompensados) e uma situação associal de controlo (sem recompensa, sem parceiro), indicando que a presença de um parceiro recompensado é importante. Além disso, mostrámos que não foi a presença do segundo cão, mas o facto de que o parceiro recebeu a comida, que foi responsável pela mudança de comportamento dos indivíduos. Em contraste com os estudos dos primatas, os cães não reagiram a diferenças na qualidade da comida ou do esforço. Os nossos resultados sugerem que outras espécies além dos primatas mostram pelo menos uma versão primitiva da aversão à desigualdade, que pode ser um precursor de sensibilidades mais sofisticadas aos esforços e recompensas de interações mútuas.

Os cães não eram esquisitos, um deles podia receber pão enquanto o outro recebia salsicha que isso não os incomodava muito. Também não se importavam se o parceiro levasse comida mesmo que não levantasse a pata, desde que levassem alguma coisa ao levantarem a pata. Agora não levar nada e ver o parceiro a comer é que não. O tipo de reacção desta experiência exige claramente um julgamento por parte do cachorro. Os animais amuavam, e ficavam claramente perturbados, algo evidenciado pela forma como se coçavam, bocejavam e lambiam a boca.

Referências
(ref1) Friederike Range, Lisa Horn, Zsófia Viranyi, Ludwig Huber (2008). The absence of reward induces inequity aversion in dogs. PNAS, no prelo. doi:10.1073/pnas.0810957105

5 comentários:

Claudia Estanislau disse...

sinto que o maior problema que antevejo aqui neste estudo, é que um comportamento quando não é reforçado entra em extinção e como tal pode ser esse o motivo e não "ciúme". Esta ideia de "injustiça" de certa forma implica um moralidade que não existe nos cães. Algo para ser justo ou injusto terá que ir de encontro aos padrões de expectativa de alguém e os cães não detêm estes conceitos para poderem reagir de acordo. Estou curiosa para ler o estudo e ver no que de, mas pessoalmente as reservas são muitas.

Cpts

Caio de Gaia disse...

Isso foi obviamente controlado. Sem outro cão ao lado, quando deixavam de lhe dar comida, continuava a dar a pata durante muito mais tempo.

Não é uma questão de moralidade, é apenas uma reacção semelhante à que se observa em macacos e antropóides, se bem que num patamar menos pronunciado.

Claudia Estanislau disse...

Bom, eu só mencionei moralidade porque o título menciona "injustiça" e esse termo implica uma moralidade, pelo menos como o conhecemos. Não estou a par das reacções noutros animais, mas gostava de saber mais acerca do assunto...

Caio de Gaia disse...

O curioso aqui é que o cão foi capaz de comparar a sua situação com a do vizinho. A nossa "moralidade" provavelmente tem as suas raízes em algo semelhante e que surge noutros grupos de animais.

Vou falar em breve das experiências com primatas. Assim que acabar a montanha de papelada burocrática que me deram para terminar até ao final do ano.

Claudia Estanislau disse...

ok aguardarei :D