domingo, agosto 26, 2007

Em Nilgiris em busca de chá (VII)


Tendo finalmente encontrado os macacos negros fui para a cama satisfeito, e adormeci rapidamente, embalado por sonhos agradáveis. Contudo, o meu sono foi em breve interrompido pela desconfortável sensação de frio, e pelo barulho da chuva e do vento. Pelos vistos uma nova depressão teria encontrado o caminho do Golfo de Bengala. Resmungando contra os elementos, fui buscar mais um cobertor (com este eram três) e voltei a adormecer. Se adormeci mal-humorado, foi ainda rezingão que acordei umas horas mais tarde, e ao olhar o céu da manhã assim me mantive. Nuvens, e mais nuvens, e talvez o frio mais intenso que eu tinha experimentado nesta minha estadia nas Nilgiris. Macacos nem vê-los. [... ler mais]

O mau tempo durou mais alguns dias, período em que os macacos não se dignaram aproximar do meu quarto. Aproveitei por isso para ir a Madurai visitar o fabuloso templo local. Madurai é uma cidade interessante, que nunca dorme. É mesmo verdade. Por exemplo, se vos apetecer chá ou comida a qualquer hora da madrugada há imensos lugares abertos, todos com um número razoável de clientes. Por outro lado, se lá forem preparem-se para a aventura que é atravessar a estrada. Os veículos ignoram a existência dessas coisas chamadas peões. Felizmente que ia com alguns habitantes locais que, várias vezes, me puxaram in-extremis antes de ser passado a ferro por um autocarro, ou abalroado por um auto.

Mas Madurai é sobretudo o templo de Meenakshi, com as suas imponentes 4 torres principais, alinhadas com os pontos cardeais. Eis uma visão do interior, onde se distingue uma das torres e o famoso Lótus dourado, num tanque de antiga reputação, mas onde hoje em dia apenas os mais devotos se lavam.

Estas torres são ricas em detalhes que contam histórias, relatos dos feitos dos deuses. Entre as vária fotografias que tirei estava esta, e só mais tarde me apercebi do que se tratava.

Trata-se de uma cena que eu conhecia do Ramayana de Valmiki. Eis aqui algo que com boa vontade se pode chamar uma tradução (feita por mim) da passagem relevante a partir da versão inglesa de R.T. Grifith:

Fortes eram os filhos nascidos de Diti;
E as valorosas crianças de Aditi também
eram bastante poderosas, boas e sinceras.
Os irmãos rivais intrépidos e corajosos
De mães-irmãs nascidos, competiram
Linhagem contra linhagem, com inveja e ciúme.

Para os menos versados no hinduísmo, Diti e Aditi eram as mães, respectivamente, dos Asuras e dos Devas, seres de carácter divino. O correspondente na mitologia grega seria equiparar os Devas aos Deuses e os Asuras aos Titãs. No detalhe do templo que eu mostrei acima, os Devas estão à esquerda, os Asuras (com grandes dentes que saem da boca) à direita. Embora filhos do mesmo pai, logo irmãos, os Devas e Asuras tinham uma relação de conflito mais ou menos aberto, mas por uma vez decidiram unir esforços:
Quando os bandos se encontraram
E, reunidos num concílio odioso, planearam
Viver, não molestados pela idade e pelo tempo,
Imortalizados na força da sua juventude.
Este era então, após discussão devida,
O conselho dos sábios e eminentes,
Agitar com potência o mar leitoso
Para a bebida dadora de vida libertar.

Esse líquido da vida, era o Amrita, e a forma de o libertar do mar leitoso algo sui-generis:
Tendo isto planeado, capturaram o Rei das Serpentes,
Vasuki, para servir de correia,
E a montanha Mandar para o seu eixo,
E agitaram com todo o seu ímpeto.
Dessa forma, ao longo de um milhar de estações,
Desta forma e daquela outra pela serpente puxaram,

Os Asuras ficaram a agarrar no lado das cabeças da serpente, enquanto os Devas no lado da cauda. Cada um dos grupos puxava à vez pelo rei das serpentes, o que fazia girar a montanha num sentido e depois noutro. A montanha ameçou desprender-se e foi o Deus Visnú que a suportou sob a forma de uma tartaruga (visível na imagem que mostro acima). Infelizmente quando tirei a fotografia não reparei que era esta a história retratada. Tenho várias fotografias desta parte do templo, infelizmente as várias cabeças de Vasuki estão encobertas pela árvore em todas elas.

Os versos continuam mais vou poupar-vos a uma maior exposição aos meus fracos dotes como tradutor. Do agitar das águas muitas coisas resultaram, incluindo, ao fim de mil anos, o tal Amrita. Aí quebrou-se a aliança. Os Devas, pela força e pelo ardil, levaram a melhor sobre os Asuras que foram banidos para as profundezas. Esta é apenas uma das muitas histórias retratadas nas paredes do templo.

Resumindo, pois podia encher páginas e mais páginas só com o que vi em Madurai, o templo é um local fabuloso, com o seu salão das mil colunas, e as ilustrações do casamento de Meenakshi. Vale bem uma visita, mesmo que certas zonas não sejam acessíveis aos não hindus. É que não convém esquecer que é um templo, não um museu, isto é, é dedicado aos crentes, não aos simples turistas. Um aviso no entanto. Madurai é muito quente, e no templo temos que andar descalços, num chão de pedra, que nas partes expostas ao Sol aquece de tal forma que poderia servir para grelhar bifes. Eu fartei-me de correr de sombra para sombra, para gáudio dos meus acompanhantes indianos. Não posso deixar de referir que não vi um único macaco em Madurai, exceptuando este baixo-relevo numa das colunas do templo. Talvez ilustre uma história mas nenhum dos meus guias me soube elucidar.

Claro que não deixei Madurai sem experimentar a cozinha local, famosa entre outras coisas pelos vários tipos de dosai. A imagem abaixo ilustra a minha refeição depois de terminar a visita ao tempo (com uma pequena paragem para pôr os meus pobres pés de molho).

Eu fui sóbrio e escolhi uma simples kaalan dosai, mas os meus acompanhantes indianos não resistiram ao apelo do ezhu suvai uttapam. Dosai assemelha-se a uma espécie de crepe, uttapam faz pensar (pelo aspecto apenas) em panquecas, kaalan é tamil para cogumelo, e ezhu suvai quer dizer sete sabores.

Depois de terminar a refeição (e o chá que se seguiu) fiquei a saber que o tempo nas montanhas deveria melhorar nos dias seguintes. Com um pouco de sorte talvez ainda conseguisse voltar a ver os langures nos dois dias que me restavam nessa minha estadia no sul da Índia.

Ficha técnica
Todas as fotografias são da minha autoria. Podem ser utilizadas livremente.

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