quinta-feira, novembro 03, 2005

O parasita manipulador

A criatura escolhida para hoje, o protozoário Plasmodium falciparum, é responsável por um dos maiores flagelos da humanidade, a malária. Estima-se que a malária seja responsável pela morte prematura de mais seres humanos que todas as outras pragas e todas as guerras combinadas. Actualmente é ainda um flagelo que afecta milhões de pessoas em todo o mundo, particularmente em África, onde se encontram cerca de 80% dos casos da doença. Em zonas onde é endémica, cerca de 50% das crianças em idade escolar estão infectadas. É uma doença de difícil erradicação, e algumas das áreas de onde tinha desaparecido estão de novo expostas. Um dos factores que torna difícil a erradicação da doença é o complexo ciclo de vida do plasmódio. [... ler mais]

A transmissão da doença faz-se pela picada de mosquitos, em particular o Anopheles gambiae, que também é parasitado pelo plasmódio. Sabia-se que o plasmódio afectava certos aspectos do comportamento dos mosquitos infectados, levando-os a só procurarem presas quando se encontrava num estádio do seu ciclo de vida capaz de infectar humanos. O que se ignorava até agora é que também manipulava os seres humanos. Num artigo na revista com arbitragem científica PLoS Biology, Renaud Lacroix e colegas mostraram que a infecção com malária torna os seres humanos mais apetecíveis para os mosquitos.

Os mosquitos não picam aletoriamente as suas vítimas mas usam um certo número de critérios. Numa tradução livre do texto do artigo:

Uma das razões para a falta de estudos conclusivos é que a apetência intrínseca que os humanos despertam nos mosquitos varia consideravelmente. A apetência depende de, por exemplo, temperatura corporal e sudação, odor corporal e hálito.
No seu estudo os autores escolheram crianças, que separaram em três grupos de acordo com o seu grau de infecção pelo parasita da malária, para testarem as escolhas do mosquito.
Depois de obter consentimento dos pais, crianças com aparência saudável de escolas primárias locais foram examinadas para detecção de malária durante a manhã. Em cada dia escolhemos três crianças para participar no estudo: uma não infectada, uma infectada com o estádio não transmissível da doença, outra acolhendo o parasita no estado em que infecta os mosquitos.
Não há motivo para preocupações, as crianças não foram expostas a nenhum tipo de perigo. Aliás no artigo os autores preocupam-se em salientar esse tipo de aspectos:
Deve notar-se que as crianças com sintomas da doença como febres foram imediatamente levadas ao centro de saúde para tratamento e não foram incluídas neste estudo.
A apetência dos mosquitos pelas crianças foi medida colocando os mosquitos numa câmara que tinha três vias que permitiam aos mosquitos sentir a atmosfera dos locais onde as crianças dormiam ou descansavam. Os autores verificaram então qual era o odor que os mosquitos seguiam preferencialmente. Mais uma vez noto que os mosquitos não se encontravam infectados e que não tiveram qualquer tipo de acesso às crianças. O resultado da experiência foi simples: os mosquitos deslocaram-se preferencialmente na direcção das crianças com o parasita no estádio em que pode infectar os mosquitos, designado por gametócito.

Há outro tipo de factores a considerar num estudo deste tipo: pode ser a criança em si que tenha algo que atraia o mosquito e não o facto de estar infectada. Por isso os autores fizeram outro tipo de controlo:
Para contabilizar a variação intrínseca da apetência dos mosquitos, tratámos todas as crianças infectadas com Fansidar e testamos as mesmas crianças duas semanas após o primeiro ensaio.
Assim, o primeiro teste mostrou os efeitos combinados da apetência intrínseca e da presença do parasita, enquanto o segundo teste só mostrou os efeitos da variação da apetência entre as crianças; a diferença entre os testes pode assim ser usada para aferir o efeito da infecção.
O resultado da experiência, depois de considerar todos os aspectos é claro: os mosquitos mostraram-se mais atraídos pelas crianças infectadas com o parasita no estádio de gametócito. As crianças com o parasita num estádio que não infectava os mosquitos, ou as crianças não doentes mostraram níveis de escolha bastante inferior.
Os nossos resultados mostram que o aumento na atracção não era devido a características intrínsecas dos portadores da doença mas sim ao estádio da infecção associado com a presença de gametócitos. O mecanismo por trás desta manipulação não é cohecido, mas é provável que os parasitas modifiquem o hálito ou odor corporal do indivíduo.
Esta é mais uma das características que faz do plasmódio uma criatura tão difícil de erradicar.

Referências
Lacroix R, Mukabana WR, Gouagna LC, Koella JC (2005) Malaria Infection Increases Attractiveness of Humans to Mosquitoes. PLoS Biol 3(9): e298

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