sexta-feira, novembro 02, 2007

O mundo visto por entre as pernas dos corvos

A semana do corvo surgiu em antecipação de um artigo que saiu agora no princípio de Novembro de 2007. Uma das questões sobre o uso de feramentas pelos corvos da Nova Caledónia, o Corvus moneduloides, é o porquê deste comportamento pouco habitual. Isso é algo que não pode ser estudado com animais em cativeiro, a resposta dessa questão só pode ser encontrada observando animais na natureza. Colocar observadores humanos a seguirem os corvos é algo de pouco práctico. Estes corvídeos são afectados pela presença humana e habitam em zonas de floresta montanhosa, onde a visibilidade é limitada. A solução que os cientistas encontraram está ilustrada na imagem: capturaram animais bravios e colocaram-lhes câmaras minúsculas entre as penas da cauda. Essas câmaras não interferem com o movimento do animal e caem com as penas aquando da muda. O ângulo de visão é o adequado a um animal que se alimenta no solo, entre os detritos, ou que usa ferramentas para pesquisar em buracos. [... ler mais]

O artigo que descreve este avanço nas observações do dia a dia dos corvos selvagens é da autoria de Christian Rutz e colegas e foi publicado na revista Science (ref1). Numa tradução livre do resumo:

Os corvos da Nova Caledónia (Corvus moneduloides) são famosos por usarem ferramentas para a busca de alimento de carácter extractivo, mas o contexto ecológico deste comportamento pouco habitual é em grande parte desconhecido. Desenvolvemos câmaras de vídeo miniaturizadas, transportadas pelo animal, para registar a ecologia alimentar de corvos selvagens movimentando-se livremente na natureza. As nossas gravações em vídeo permitiram estimar a eficiência da busca de alimento e revelaram que o uso de ferramentas, e a escolha de materiais para ferramentas, são mais diversificados do que se julgava anteriormente. O estudo através do vídeo tem um grande potencial para o estudo do comportamento, e ecologia, de muitas outras espécies de aves, que são tímidas ou vivem em locais inacessíveis.

O dispositivo colocado nos animais permitia dois tipos de monitorização. Um emissor VHF de tipo convencional permitia determinar a posição de animal. Esta técnica é usada de forma relativamente comum para determinar o habitat de várias espécies animais, mas não fornece informação sobre o tipo de actividades que o animal desenvolve nesses locais. Os corvos carregavam por isso um emissor a 2.4 GHz que transmitia um sinal vídeo de imagens a cores com som. O sinal de vídeo era transmitido após um perídodo de habituação (que podia chegar a 48 horas). As montagens que incluiam a câmara, baterias, e vários sensores, mediam aproximadamente 4.5×2.0×1.3 centímetros e pesavam 14.54 ± 0.21 g, correspondendo a menos de 5% da massa corporal dos corvos. Os autores escolheram o período da muda da pena nos corvos para assegurarem que as câmaras seriam largadas quando muito ao fim de poucas semanas. Estes e uma série de outros aspectos destinados a minimizarem o efeito sobre os animais são discutidos no artigo.

Os dados eram recolhidos a partir de receptores portáteis operados a partir do solo, com duas equipas independentes a operarem equipamentos redundantes, para maximizar a recepção do sinal vídeo. Eis aqui o exemplo do trajecto de um animal que passou a sua manhã na vizinhança de um pequeno vale em forma de crescente. O azul indica o período antes de iniciar a transmissão do sinal vídeo, o vermelho o período onde o sinal vídeo estava disponível.

O interessante é poder observar o que o animal faz nesses instantes. Por exemplo, observou-se que um dos animais durante a tarde efectuou as seguintes actividades: fabricou e usou ferramentas, capturou três lagartos pequenos, manuseou duas conchas vazias de caracol, e apanhou e comeu um fruto. Estes acontecimentos estavam separados por sequências em que o animal buscava comida no chão ou saltando de ramo para ramo. Para mostrar a importância das câmaras, atentem nesta frase, relativa a esse animal, retirada do artigo:
Vimos o pássaro apenas uma vez apesar de nos encontrarmos a menos de 100 metros da sua localização durante a filmagem, com visão não obstruída de todos os recantos relevantes do habitat.

Ou seja, o comportamento do animal não seria documentado, mesmo com observadores nas imediações. Eis aqui alguma imagens da actividade desenvolvida pelos corvos:

O artigo é acompanhado por uma série de filmes. Podemos ver corvos a capturarem caracóis e lagartos, a comerem frutos, a fabricarem ferramentas, a deslocarem-se pelo chão, e a voarem.

Filme s1, Filme s2, Filme s3, Filme s4

Em 7 horas e meia de filmagens analisadas pelos investigadores, em que foram observados doze corvos, os autores observaram o manuseamento de 6 caracóis (dois comidos, os outros com conchas vazias), três lagartos pequenos (todos comidos), dois pequenos invertebrados (ambos comidos), três objectos não identificados (consumidos), oito frutos (sete comidos pelo menos parcialmente), e uma incursão com consumo de pequenas bagas. A partir das observações os autores estimaram que os corvos consomem oito items da sua dieta por cada hora em que buscam alimentam. O valor parece baixo, embora os autores notem que não existem estudos semelhantes sobre outras espécies de corvos tropicais. Este aspecto talvez explique as capacidades tecnológicas destes corvos. Num ambiente difícil o fabrico e uso de ferramentas podem aumentar e muito o sucesso dos animais na busca de alimento. Isso é algo a verificar com outros estudos, este artigo expõe sobretudo a nova técnica de observação.

Observações deste tipo, com câmaras presas a animais, não são novidade, são efectuadas há já algum tempo em animais marinhos, bastante maiores. Desde que se ajuste a flutuabilidade do dispositivo, por forma a que seja neutra, os impactos sobre os animais são em geral mínimos. Só com os avanços na miniaturização de dispositivos electrónicos se pôde avançar para as aves. O potencial para estudos de ecologia e mesmo fisiologia é imenso. Os autores notam que neste estudo a cloaca e a barriga dos corvos eram visíveis o que significa que se podia determinar a frequência com os animais respiravam e defecavam. Este estudo é apenas o início.

Referências
(ref1) Christian Rutz, Lucas A. Bluff, Alex A. S. Weir, Alex Kacelnik (2007). Video Cameras on Wild Birds. Science Vol. 318. no. 5851, p. 765. doi:10.1126/science.1146788.

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