terça-feira, outubro 31, 2006

O terror com os pés ligeiros

Este é um desenho de um Phorusrhacos, uma das aves do terror de que falei aqui uns poucos dias atrás. O Phorusrhacos é uma das Phorusrhacidae mais frequentemente ilustradas pois foi a primeira a ser descoberta. A espécie é conhecida através de vários exemplares que incluem diferentes segmentos do esqueleto, a partir dos quais não se consegue todavia reconstruir o esqueleto completo. O maior problema é o crânio. Foi feito um rascunho a partir de um crânio que se apresentava quase completo, mas em tão mau estado de conservação que, de tão frágil, se desfez ao ser recolhido. A situação não é muito melhor para as outras aves gigantes desta família. Por exemplo, no esqueleto da Paraphysornis brasiliensis, que surgia no início da contribuição anterior sobre este tema, o maxilar superior, a cintura pélvica, e o esterno, tinham sido modelados a partir de outras aves do terror de menores dimensões. Daí que a descoberta de um novo crânio gigantesco, e de partes dos membros posteriores, tenha causado alguma sensação. [... ler mais]

A nova descoberta aconteceu dois anos atrás na Argentina, na Patagónia. Um estudante de liceu chamado Guillermo Aguirre-Zabiala encontrou o fóssil nas formações rochosas entre duas habitações próximas da estação de caminho de ferro da sua povoação a este de Bariloche (os leitores portugueses vão achar este nome interessante). Há um outro aspecto bastante positivo na história. O jovem pensava seguir psicologia, só que isto entusiasmou-o de tal forma que decidiu ser paleontólogo.

Algum do novo material descoberto é descrito num artigo muito curto da autoria de Luis Chiappe e Sara Bertelli na revista Nature (ref1). Numa tradução livre do resumo:

Estas aves monstruosas eram provavelmente máis ágeis e menos avantajadas do que se julgava anteriormente.

Os forusracídeos ("aves do terror") são uma linhagem extinta que inclui as maiores aves conhecidas. Reconstruções destes carnívoros do Cenozóico colocaram de forma consistente o ênfase num bico muito elevado, órbitas redondas e um crânio abobadado, embora informação muito escassa esteja de facto disponível para o crânio das espécies maiores. Um novo e importante fóssil aviano gigante foi descoberto do Miocénico médio da Patagónia (Comallo, Argentina), que mostra diferenças significativas entre os crânios dos forusracídeos grandes e pequenos. Concluímos que as reconstruções dos crânios dos forusracídeos gigantescos a partir dos seus parentes menores não são fiáveis, e que a correlação estabelecida há muito entre a sua corpolência e reduzida agilidade cursorial precisa de ser reavaliada.

Ora quão grande é este novo crânio? Pertencendo a um indivíduo para já conhecido apenas pela referência BAR 3877-11, ainda sem nome atribuído à espécie, este crânio quase completo é o maior crânio de uma ave descoberto até hoje: tem 716 milímetros de comprimento, e é um pouco mais grácil que o dos parentes mais pequenos. Antes da descoberta do BAR 3877-11, a morfologia craniana de forusracídeos com crânios de mais de 60 centímetros estava limitada aos fragmentos do Devincenzia pozzi, e ao desenho do crânio de Phorusrhacos longissimus. Segundo Chiappe e Bertelli, provavelmente inspirados por esse desenho, vários autores têm utilizado como modelo para os forusracídeos gigantes uma versão ampliada do crânio de uma espécie bastante menor, o Patagornis marshi, cujo crânio andaria à volta de 350 milímetros de comprimento. O estudo do BAR 3877-11 sugere que este procedimento estará provavelmente errado.

Em geral assumia-se também que as aves do terror maiores seriam muito menos ágeis que os membros menores da família. Isso parece não se aplicar à nova descoberta. Juntamente com o crânio do BAR 3877-11 foram encontrados fragmentos do tarsometatarso e das falanges. A partir das dimensões destes elementos é possível estimar que esta ave era cerca de 10% maior que o maior forusracídeo conhecido anteriormente (P. longissimus e Brontornis burmeisteri). Ora estamos a falar de animais cuja cabeça se encontrava a qualquer coisa como três metros acima do chão. Se repararem nos desenhos que acompanhavam a minha contribuição anterior podem ver que a B. burmeisteri tinha proporções algo avantajadas, parecia mais forte que ágil. Ora o BAR 3877-11 possui um tarsometatarso longo e fino, o que sugere um animal bastante mais leve e ágil que a B. burmeisteri. Teriam seguramente modos de vida muito diferentes. Uma imagem do crânio encontrado, e uma ilustração do aspecto do BAR 3877-11, que teria vivido há cerca de 15 milhões de anos, da autoria de S. Abramowicz pode ser vista nas National Geographic News.

Para finalizar mais uma ilustração do Phorusrhacos, a mais famosa de todas, do artista Zdenek Burian. É uma imagem curiosa, uma das aves parece estar a oferecer o animal morto à outra. Será um casal, com o macho a trazer alimento à fêmea? Será um ritual de acasalamento?

Confesso que não faço ideia de qual o estatuto quanto a direitos de autor desta imagem, mas já que o Darren Naish a colocou no Tetrapod Zoology... Aconselho a visita a esse blogue (em inglês) para todos os interessados nestas coisas das aves do terror. Darren Naish trabalhou neste tema, e esta é apenas a primeira de uma série de contribuições em que ele irá falar sobre tudo o que há para saber sobre estas aves aterradoras.

Ficha técnica
O desenho de Phorusrhacos, de Charles R. Knight foi retirado desta página da Wikimedia Commons.
A famosa ilustração de Zdenek Burian foi retirada desta galeria na República Checa. NOTA: não sei o estatuto dos direitos de autor.

Referências
(ref1) Luis M. Chiappe & Sara Bertelli (2006). Palaeontology: Skull morphology of giant terror birds. Nature 443, 929 (2006). Laço DOI

segunda-feira, outubro 30, 2006

O diabo também tem anjos da guarda

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A senhora que aparece a segurar este Sarcophilus harrisii, mais conhecido como diabo da Tasmânia, é a doutora Menna Jones, que faz parte da lista de autores do artigo sobre a gestão da doença do tumor facial do diabo que discuti na contribuição anterior desta série. O animal, assim chamado devido ao seu mau feitio, desperta, apesar do nome, alguma simpatia. Neste filme, um diabo, depois de um grunhido com o seu quê de mal humorado, dedica-se à sua higiene pessoal de um modo que tem o seu quê de encantador. O filme é cortesia do Departamento da Indústrias Primárias, Água e Ambiente da Tasmânia, que desenvolve aquilo a que chama o Programa da Doença do Tumor Facial do Diabo. Em Março de 2006, esse Programa lançou uma publicação em que descreve a situação e as várias medidas em curso ou projectadas para o futuro próximo. [... ler mais]

A publicação começa por descrever o que sabia à época sobre a doença. Numa tradução livre:
A doença do tumor facial do diabo (DTFD) é uma condição fatal nos diabos da Tasmânia, caracterizada por cancros (canceres) em torno da boca e da cabeça. Os cancros começam como pequenas lesões ou altos em torno da boca. Estes rapidamente se desenvolvem em grandes tumores na face e pescoço (e algumas vezes noutras partes do corpo). Diabos com tumores faciais têm dificuldade em comer. Morrem habitualmente 3 a 8 meses após os primeiros sinais das lesões -- em resultado da fome e da cessação de funções corporais.

Desta vez resolvi não colocar imagens de diabos doentes. Impressionam demasiado. A publicação trata sobretudo do que se está a fazer para mitigar a situação. Uma parte importante dos esforços é o mapeamento da doença, para identificar as áreas afectadas. Os cientistas instalaram estações onde capturam e monitorizam os animais. Não resisto a mostrar outro filme, desta vez da captura de um diabo.


As zonas do noroeste e oeste da Tasmânia parecem ainda estar livres de contágio. Apesar de a doença afectar diabos em mais de metade da ilha, os efeitos são mais notórios nas zonas onde os diabos são mais numerosos, e sobretudo nos locais onde a doença se manifestou primeiro. Nesses locais o número de diabos caiu qualquer coisa como 80% desde que se registaram as primeiras infecções. Como eu indiquei nas contribuições anteriores, os cientistas têm avançado bastante na compreensão da doença e dos mecanismos da sua transmissão. O trabalho de Anne-Maree Pearse e Kate Swift (2006) mostrou que a doença tinha todas as características de um transplante de tecido canceroso entre animais como consequência das mordidas, bastante comuns sobretudo na época de acasalamento. Um dos problemas que os cientistas enfrentam neste momento tem a ver com a inexistência de um teste que permita saber se um animal está ou não infectado pela doença antes do aparecimento das lesões cutâneas.

Embora ainda haja muito que aprender sobre a doença, as autoridades da Tasmânia iniciaram já actividades de gestão. Numa parte da ilha, a Península de Tasman, com uma ligação estreita ao resto da ilha, começaram a estudar os efeitos da remoção dos animais doentes na estrutura da população de diabos. Para já verificou-se que a prevalência da doença neste península é reduzida e a distribuição etária dos animais não tem sido afectada.

Aqui incluo mais uma citação, para responder a uma preocupação evidenciada pelo João Carlos do Chi vó, non pó, num comentário a uma contribuição anterior. Ele interrogava-se até que ponto tudo isto não poderia ser obra dos seres humanos, que estariam interessados em livrar-se de uma criatura incómoda. Citando a Doutora Menna Jones sobre o trabalho na península:
A responsável de gestão da vida selvagem do Projecto DTFD, a doutora Menna Jones, disse que a comunidade local e os operadores turísticos merecem reconhecimento pelo seu apoio. "Proprietários de terras locais deram-nos acesso aos seus terrenos para executarmos o nosso programa de captura," disse ela. "De forma semelhante, um dos parques de vida selvagem desempenhou um papel importante nos nossos programas de pesquisa, suportando os custos, para nos auxiliar a tornar este teste num sucesso".

O ênfase é meu, apenas para salientar o facto de que o diabo tem interesso turístico, é o animal emblemático da Tasmânia, que não existe no continente.

Uma estratégia que os investigadores têm utilizado como alternativa às armadilhas são os dispositivos fotográficos automáticos, que permitem monitorizar os diabos em regiões de difícil acesso, e também em zonas onde a densidade de diabos é relativamente baixa. O dispositivo utilizado é bastante simples: um isco, que pode ser alimento ou um odor, um par de máquinas fotográficas digitais, e um mecanismo de disparo accionado por um sistema de infravermelhos. A qualidade das imagens, como a que se mostra aqui ao lado, é bastante boa. A partir de marcas na pelagem e cicatrizes é mesmo possível ao pessoal no terreno identificar os diferentes animais. Não resisto a colocar em baixo mais uma imagem obtida por estes dispositivos automáticos. Imagens destes bicharocos nunca são demais.

Um dos aspectos que têm preocupado os cientistas é a gestão de populações em cativeiro. Estas populações funcionam como uma espécie de seguro, e uma precaução, caso não seja possível controlar a doença nas populações em liberdade. Alguns indivíduos jovens foram retirados de populações sem sinais de doença, e transferidas para zoológicos e parques no continente, onde existem programas de reprodução em cativeiro. Estas populações poderão vir a ser uma reservas de diversidade genética importantes para o futuro da espécie, em particular se forem necessários programas de repovoamento. Até agora não houve casos de doença nos animais mantidos em cativeiro, e num dos parques estão a ser observados orfãos, cujas morreram da doença, para perceber se a doença é transmitida da mãe para as crias.

Espero que o diabo não passe a existir apenas nos zoológicos. Trata-se de um sobrevivente nato. A situação de perigo de extinção que os diabos enfrentam não é nova. Os colonos europeus, quando se instalaram na Tasmânia, encararam o diabo como um animal nocivo, pilha-galinhas, e um perigo para ovelhas e cordeiros. Durante mais de um século, de 1830 a 1941, havia mesmo uma recompensa pelo seu abate, e tornaram-se muito raros. Só em Julho de 1941 passaram a ser protegidos por lei e a população fez uma recuperação notável. Daí que a situação actual do diabo seja tão desconcertante: conseguiu sobreviver a uma perseguição feroz por parte dos seres humanos, apenas para sucumbir a algo que apareceu dentro da própria espécie. Deve notar-se que os colonos europeus poderão não estar isentos de culpas: a propagação do tumor parece ser facilitada pela pouca diversidade genética dos diabos, e isso pode ser devido à actuação dos seres humanos.

Ficha técnica
O PDF do folheto que serviu de inspiração a esta contribuição, e de onde foram retiradas as imagens, pode ser encontrado nas páginas do DPIWE.

quinta-feira, outubro 26, 2006

A ave que lançava o terror no Brasil

Esta criatura é uma Paraphysornis brasiliensis, membro de um grupo de aves predadoras que habitaram nas américas até tempos muito recentes, os Phorusrhacidae. Esta ave erguia a sua cabeça acima do chão a uma altura superior à de um homem adulto médio. O seu crânio media qualquer coisa como 60 cm. Não se tratava do maior membro da sua família, outras espécies eram ainda maiores, pelo que não espanta que a designação mais comum destas aves seja "as aves do terror". Os Phorusrhacidae foram os predadores dominantes nos ecossistemas sul americanos durante dezenas de milhões de anos. Os competidores das aves do terror durante a maior parte da sua existência foram carnívoros marsupiais, incluindo criaturas que se assemelhavam a gigantescos gambás assassinos com dentes de sabre. [... ler mais]

A Paraphysornis brasiliensis foi descrita pela primeira vez por Herculano Alvarenga em 1982, e o mesmo autor, com a colaboração de Elisabeth Höfling, em 2003, examinou as relações entre as várias famílias que se incluíam nas aves do Terror. O artigo, publicado nos Papéis Avulsos de Zoologia do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo (ref1), inclui no final um resumo em português.

Foram estudados os fósseis de aves atribuídos à família Phorusrhacidae depositados em diversos museus da América do Sul, da América do Norte e da Europa, com o objetivo principal de caracterizar esta família e reorganizar o estado caótico que até então envolvia a nomenclatura e classificação destas aves. A reconstituição de algumas espécies é feita, com o propósito de formar uma idéia sobre o tamanho, massa corpórea, postura e hábitos com base no esqueleto das mesmas. As formas européias, Ameghinornis minor e Aenigmavis sapea são refutadas como pertencentes à esta família. São refutadas ainda várias formas do Terciário da Argentina, descritas com base em segmentos de esqueleto, insuficientes para uma plena identificação como é o caso dos gêneros Cunampaia, Smiliornis, Pseudolarus, Lophiornis e Riacama, freqüentemente referidos como pertencentes aos Phorusrhacidae.

Depois de verificar que as formas europeias afinal estavam fora da família a origem geográfica e temporal destes animais parece clara:
A família Phorusrhacidae certamente originou-se na América do Sul pelo final do Cretáceo, como resultado de um endemismo formado pelo isolamento dessa porção de terra. Pelo final do Plioceno, com a emersão do istmo do Panamá, a família estendeu-se até a América do Norte onde pelo menos uma espécie, Titanis walleri que talvez represente a última conhecida desta família, que extinguiu-se no início do Pleistoceno.

A América do Sul foi durante muito tempo uma gigantesca ilha, separada das outras massas continentais. Com o fim desse isolamento, no Pliocénico, e a junção entre as américas, as aves do terror invadiram a massa continental do norte, onde conseguiram competir durante bastante tempo com mamíferos placentários como felinos, canídeos e ursos.

Alvarenga e Höfling removeram muitos géneros da família Phorusrhacidae, mas mesmo assim ainda sobrou muita coisa:
A revisão sistemática foi conduzida com inúmeros problemas de nomenclatura e a família Phorusrhacidae passa então a ser constituída de cinco subfamílias, ou seja: Brontornithinae, Phorusrhacinae, Patagornithinae, Psilopterinae e Mesembriornithinae, nas quais se distribuem 13 gêneros e 17 espécies. Os caracteres de todos os táxons são descritos e finalmente é apresentada uma distribuição geocronológica de todas as espécies.

Eis aqui reconstruções de algumas espécies incluídas nos Phorusrhacidae. As dimensões relativas estão correctas, e para referência indica-se a altura média de um homem adulto.

O artigo fornece alguns números. A Brontornis burmeisteri foi uma das maiores aves que existiu, com o dorso a uma altura de 1.75 metros, e a cabeça quando bem levantada erguer-se-ia a cerca de 2.80 metros. O peso andaria entre os 350 a 400 kg. A Paraphysornis brasiliensis era ligeiramente menor, 1.40 metros no dorso, a cabeça 2.40 metros acima do solo, peso por volta dos 180 kg. Embora ligeiramente maior, o Phorusrhacus longissimus era de constituição mais ligeira e devia pesar cerca de 130 kg. A Andalgalornis steulleti teria o dorso cerca de um metro acima do solo e pesaria cerca de 40 a 50 kg. O Psilopterus bachmanni, uma das aves do terror mais pequenas andaria por volta dos 5 kg de peso, e mesmo com o pescoço bem estendido a cabeça não se erguia acima dos 80 cm. Todas as aves do terror conhecidas seriam incapazes de voar, incluindo mesmo as mais pequenas como o Psilopterus bachmanni.

A história destas aves começou de forma curiosa em 1887 com a descoberta duma mandíbula de Phorusrhacus longissimus que foi atribuída a uma preguiça! Só em 1891 esse erro foi corrigido, altura em que vestígios doutras espécies desta família tinham já sido encontrados. Algo de muito interessante acerca destes animais tem a ver com a descoberta dos ossos das "asas" da espécie Titanis walleri. Um artigo de Chandler em 1994, no Bulletin of the Florida Museum of Natural History (ref2), mostrou que as aves do terror estariam a desenvolver mãos a partir da suas asas. As aves do terror possuíam braços fortes, e na Titanis os ossos estavam modificados de tal forma que a forçavam a manter os braços na frente do corpo, com as palmas viradas para dentro. Parecia também ter um dos dedos muito móvel, e Chandler sugeriu que esse dedo suportaria uma garra que poderia ser usada para dominar e manobrar as suas presas.

Não se sabe até que ponto isto é característico das outras Phorusrhacidae, pois a maioria dos esqueletos descobertos são muito incompletos. É no entanto interessante imaginar que até há relativamente pouco tempo existiam na América do Sul predadores emplumados com mais de 2 metros de altura, bípedes, e com mãos capazes de agarrar. Para muitos autores as aves são um ramo dos dinossauros terópodes, o que significa que no Brasil os dinossauros foram até há poucos milhões de anos os carnívoros dominantes. Embora não tivessem voltado a criar dentes nem caudas compridas, eram uma boa aproximação aos velociraptores que aparecem nos filmes do Parque Jurássico.

Este artigo foi motivado por uma descoberta recente, publicada esta semana. Voltarei ao tema das aves do terror, provavelmente durante o fim de semana.

Referências
(ref1) Herculano M.F. Alvarenga, Elisabeth Höfling. SYSTEMATIC REVISION OF THE PHORUSRHACIDAE (AVES: RALLIFORMES). Papéis Avulsos de Zoologia, Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo. Volume 43(4):55-91. PDF.
(ref2) Chandler, R. 1994. The wing of Titanis walleri (Aves: Phorusrhacidae) from the late Blancan of Florida. Bulletin of the Florida Museum of Natural History, Biological Sciences 36:175-180.

domingo, outubro 22, 2006

Prós e contras das várias maneiras de exorcizar o diabo

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Esta imagem mostra um diabo da Tasmânia macho, como os leitores mais atentos terão seguramente reparado, numa pose defensiva. Esta postura é adequada ao momento delicado que a espécie atravessa. Falei aqui, numa contribuição anterior, da estranha maleita que está afectar estes animais. Os cientistas acreditam que os tumores faciais que estão a matar os animais são devidos a uma estirpe de células cancerosas que se originaram num diabo há pelo menos dez anos, e que desde então têm mantido uma existência independente. A doença tem neste momento foros de epidemia e coloca mesmo em risco a sobrevivência desta criatura que, apesar do mau feitio, não deixa de despertar alguma simpatia. A posição das autoridades e dos cientistas é saber que providências tomar. Se esperarem demasiado, a extinção pode ser irreversível, mas, por outro lado, qualquer iniciativa a tomar pode também acarretar consequências desastrosas. [...ler mais]

Os prós e os contras das várias abordagens possíveis são discutidas num artigo recente de Hamish McCallum e Menna Jones na revista PLoS Biology (ref1). Para terem uma ideia do quão horríveis são os efeitos da doença, resolvi incluir uma imagem. Previno com antecedência, que impressiona um bocado. Para ver clicar aqui. Este tumores, para além da dor e do desconforto que devem provocar, tornam difícil para o animal alimentar-se convenientemente, e os diabos acabam por morrer de fome poucos meses após contrairem a doença. A questão é o que fazer para impedir que todos os diabos sigam o exemplo do infeliz animal na foto.

McCallum e Jones começam com uma breve descrição da situação:
Ao tempo da chegada dos europeus, a Tasmânia era o último refúgio dos dois maiores carnívoros marsupiais, o tilacino (ou tigre da Tasmânia), Thylacinus cynocephalus, e o diabo da Tasmânia, Sarcophilus harrisii. A extinção do tilacino é talvez a mais conhecida das muitas extinções de mamíferos australianos desde a colonização pelos europeus. Foi parcialmente atribuída à doença, embora haja poucos indícios físicos que apoiem essa possibilidade. Em 1996, no nordeste da Tasmânia, foram fotagrados diabos da Tasmânia com o que aparentavam ser grandes tumores nas suas faces. Relatórios esporádicos continuaram durante os cinco anos que se seguiram. Por volta de 2005, os tumores ocorriam em mais de metade do território da espécie, e estavam associados a declínios substanciais da população. No seguimento do receio de que a doença pudesse causar a extinção do diabo, a espécie foi listada como vulnerável à extinção aos níveis nacional e do estado. Nas palavras que Oscar Wilde colocou na boca da Lady Bracknell, perder um grande carnívoro marsupial pode ser encarado como um infortúnio; perder ambos pareceria falta de cuidado.

As coisas não são de facto fáceis. É preciso agir depressa, mas o que quer que se faça será baseado num conhecimento muito incompleto do que se passa no terreno. Os autores colocam a questão da seguinte forma: como se deve agir quando se sabe muito pouco? No cenário actual, mesmo causas de mortalidade com que as populações de diabos conseguem lidar no presente, como atropelamentos, outras doenças, perda de habitat, e perseguição pelos humanos, podem levá-los à extinção. Daí a urgência em agir.
As opções incluem: (1) redução das taxas de contacto entre indivíduos infectados e indivíduos susceptíveis, incluindo quarentena e movimentos de controlo; (2) abate de indivíduos infectados; (3) abate de todos os indivíduos numa dada área; (4) vacinação ou tratamento profilático semelhante de indivíduos não infectados; e (6) descontaminação do ambiente.

Segundo os autores, o primeiro passo é estabelecer uma população livre de doença em cativeiro ou em locais que possam ser isolados da doença. Esta abordagem deve funcionar pois não parece existir um vector para a doença, que exige contacto entre indivíduos. A opção deve ser vista contudo como uma medida de segurança, embora provavelmente não suficiente para salvar a espécie na natureza, pois uma reintrodução é sempre um assunto delicado.

A redução de contacto entre indivíduos e a quarentena são difíceis de estabelecer, mesmo que se tente manipular a distribuição de alimento e as interacções sociais. O tratamento dos animais infectados ou a vacinação é seguramente o método de acção mais ético. Os autores notam no entanto uma série de aspectos a considerar. No caso de outra doença causada por uma estirpe de células cancerosas, o sarcoma venéreo dos cães, há um procedimento clínico que obtém bons resultados, mas que exige tratamentos de tipo intravenoso que, numa população selvagem, são impracticáveis. Além disso o tempo de conseguir uma cura ou gerir o tratamento poderão ser demasiado longos.

A questão seguinte é a da infecciosidade. Se for muito elevada, o que não parece ser o caso, então o abate de todos os animais numa dada área é uma opção válida. Isso sucede por exemplo com doenças do gado como a febre aftosa, e todos temos presentes as hecatombes de galinhas e outras aves de capoeira com a questão da gripe aviária. Os autores notam no entanto o problema com esta opção:
Para animais domésticos, restabelecer a população pode ser caro, mas é relativamente simples do ponto de vista biológico. Contudo, um abate generalizado é uma estratégia de alto risco para as espécies selvagens. Irá seguramente aumentar a probabilidade de extinção, pelo menos à escala local, e o restabelecimento é muitas vezes difícil, com problemas importantes relacionados com a perda de diversidade genética. Para além disso, tentar eliminar uma espécie numa parte substancial do seu presente domínio seria quase de certeza política e eticamente inaceitável bem com logisticamente muito difícil.

Um pouco adiante, ainda sobre este aspecto:
Mostrou-se que um abate deste tipo é contraproducente nalguns casos, pois pode levar à quebra da organização social com um aumento do mobilidade e, como consequência, a um aumento na transmissão da doença.

Uma opção menos drástica é o abate selectivo, ou seja, matar apenas os indivíduos doentes.
As consequências negativas potenciais desta estratégia são muito menores que as do abate não selectivo; contudo, se os indivíduos infectados tiverem valor reprodutivo, esse valor tem que ser pesado contra o benefício de os remover como fontes potenciais de infecção.

Segundo os autores, modelos epidemiológicos e experiências de controlo poderão ajudar, mas o problema é o tempo: esperar até que se recolham dados suficientes para verificar quais os modelos que serão viáveis é pouco aconselhável. Todos os cenários que se enfrentam neste momento são desagradáveis, mas algo tem que ser feito e depressa. Segundo McCallum e Jones o abate selectivo é possivelmente a estratégia com maior possibilidade de salvar a espécie.

Referências
(ref1) McCallum H, Jones M (2006). To Lose Both Would Look Like Carelessness: Tasmanian Devil Facial Tumour Disease. PLoS Biol 4(10): e342. Laço DOI.

sexta-feira, outubro 20, 2006

Ter outro diabo no corpo

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Este diabo da Tasmânia está simplesmente a descansar, mas o seu ar algo desanimado é adequado à situação periclitante destas criaturas. De seu nome científico Sarcophilus harrisii, o diabo da Tasmânia só se encontra nessa ilha ao largo da Austrália, tendo desaparecido do continente há cerca de 600 anos. Trata-se do maior carnívoro marsupial existente, do tamanho de um cão pequeno, medindo cerca de 60 centímetros de corpo-cabeça, com cerca de 25 centímetros de cauda. Pesa menos de 8 kg e, no estado selvagem, vive geralmente menos de 6 anos. Em 1996 foi detectado o primeiro caso de uma doença terrível, um tumor facial que acaba por levar à morte em poucos meses, e que tem dizimado populações. A doença aflige diabos em mais de metade da ilha e contina a espalhar-se. Por estranho que possa parecer, podemos estar a assitir a uma extinção causada por um animal morto há bastante tempo, mas que teima em assombrar os seus congéneres. [... ler mais]

A explicação para a doença é da autoria de A.-M. Pearse e K. Swift e foi publicada na revista Nature (ref1) há alguns meses. Numa tradução livre do resumo:
Uma parecença marcante no cariótipo destes tumores malignos significa que poderão ser infecciosos.

O diabo da Tasmânia, um carnívoro australiano de grandes dimensões, encontra-se sob a ameaça de doença fatal, amplamente espalhada, na qual um tumor da boca e da face perturba a capacidade do animal em se alimentar. Mostramos aqui que os cromossomas nestes tumores sofreram um rearranjo completo, que é idêntico para cada um dos animais estudados. À luz desta notável descoberta, e do bem conhecido comportamento agressivo dos diabos, propomos que a doença é transmitida por transplante alógeno, com uma estirpe de células infecciosas passada directamente entre os animais através de dentadas que infligem uns aos outros.

Os diabos da Tasmânia são animais solitários, mas que se juntam muitas vezes para se alimentarem de carcaças de animais mortos. Aí mostram maneiras à mesa execráveis, com rosnadelas, guinchos, e latidos constantes, e lutas terríveis em que se mordem uns aos outros, e os deixam cheios de cicatrizes. Como as dentadas ocorrem com maior frequência na região da boca, onde se localizam a maior parte dos tumores, os cientistas resolveram investigar se o tumor não estaria simplesmente a ser transplantado de uns animais para outros.

As células normais dos diabos possuem 14 cromossomas, que incluem os cromossomas sexuais XX e XY. As células cancerosas possuem apenas 13 cromossomas, que apresentam inúmeras anormalidades, e onde os cromossomas sexuais estão ausentes. O mais importante é que os tumores faciais em todos os animais investigados pelos autores apresentam exactamente as mesmas anomalias nas suas células cancerosas. A reorganização dos cromossomas dos diabos da Tasmânia é muito complexa, e não se detectaram estágios intermédios, mesmo em tumores pequenos que se estão a iniciar. Os autores referem que as modificações vistas nos cromossomas não são semelhantes a nenhum tipo de arranjo visto em tumores humanos, quer sejam espontâneos ou causados por vírus. Um dos animais estudados forneceu evidência bastante clara do que se está a passar:
Apoio adicional, para a teoria do transplante alógeno na transmissão da doença, proveio da observação, afortunada, de uma inversão pericêntrica no cromossoma 5 no cariótipo de um animal. Esta anomalia foi encontrada em todas as culturas dos tecidos normais daquele diabo, mas não estava presente em nenhum dos cromossomas 5 das suas células do tumor facial, onde deveria ter sido observada se a neoplasia se originasse dos seus próprios tecidos.

A conclusão é simples: as células cancerosas não pertenciam originalmente a este animal, infectaram-no e desenvolveram-se no seu rosto. Os autores referem um tipo de tumor que mostra o mesmo tipo de anomalias nos cromossomas, o sarcoma venéreo transmissível dos cães, que se acredita ser também devido a um "clone capaz de existência parasítica." Pelo vistos há mesmo exemplos de transmissão de tumores cancerígenos em seres humanos:
Os humanos podem também infectar-se uns aos outros acidentalmente com cancro (câncer), através da implantação de células em pacientes que receberam transplantes de orgãos. Esses cancros desenvolvem-se então de acordo com a sua progressão habitual.

Aqui os autores notam um aspecto importante para compreender a epidemia que afecta os diabos. Os transplantes de orgãos têm uma possibilidade de rejeição mais reduzida se o dador for um parente próximo, com tecidos compatíveis. Os diabos, com pouca diversidade genética, terão assim uma resposta imunitária reduzida às celulas cancerosas implantadas quando se mordem uns aos outros. Os seus sistemas imunitários não reagem a elas como sendo organismos invasores. Esta parece ser uma boa pista para compreender o que se está a passar no terreno. Para o passo seguinte vai ser preciso fazer análises de ADN mais detalhadas, que possam explicar a toxicologia, progressão, e propriedades epidemiológicas da doença.

O problema nesta história é que o tempo urge e as medidas têm que ser tomadas depressa. As taxas de mortalidade são aterradoras: são raros os animais que vivam mais de três anos, e a densidade populacional caiu qualquer coisa como 80% nos locais infectados. Para piorar as coisas, começaram a aparecer raposas na Tasmânia em 2001 e, se elas se estabelecerem, uma população reduzida e doente de diabos poderá não conseguir sobreviver.

Ficha técnica
Imagem do diabo a descansar cortesia de Wayne McLean, encontrada nesta página da Wikimedia Commons.

Referências
(ref1) A.-M. Pearse and K. Swift (2006). Allograft theory: Transmission of devil facial-tumour disease. Nature 439, 549. Laço DOI.

quinta-feira, outubro 19, 2006

O nobre e ameaçado rato-de-água

O rato-de-água, da espécie Arvicola sapidus, é uma simpatica criaturinha, de pelagem espessa, que vive nas margens de cursos de água, canais de irrigação, lagos, e outras zonas húmidas, em Portugal, Espanha e França. Para roedor tem um tamanho razoável, uns respeitáveis 162 a 220 milímetros de cabeça-corpo, mais uma cauda com cerca de dois terços do comprimento do corpo. Pode atingir uns fabulosos 300 gramas de peso. Constrói galerias de túneis, em que uma das saídas é sempre submersa, e como o nome comum indica está muito bem adaptado à vida aquática. Essencialmente herbívoro, não desdenha insectos ou mesmo pequenos peixes, crustáceos, e anfíbios. Está em regressão, um eufemismo que se utiliza para dizer que caminha a passos largos para a extinção. Os motivos que me levam a falar neste roedor têm a ver com uma certa fanfarra na imprensa sobre um certo roedor de Chipre, que teria sido a única espécie de mamífero descrita na Europa nos últimos 100 anos. Pois bem o A. sapidus só ganhou esse nome em 1908. [... ler mais]

Nas regiões tropicais descobrem-se constantemente novas espécies de vertebrados. Na Europa, com uma paisagem quase completamente talhada pelos humanos, e com uma enorme densidade de investigadores profissionais e naturalistas amadores, estas descobertas são mais raras. O exagero da imprensa é habitual, e neste caso inclui mesmo revistas com alguns pergaminhos. Por exemplo no comunicado de imprensa da National Geographic, é referido:

A Europa ainda tem uns poucos segredos por descobrir. Cientistas anunciaram a descoberta do rato cipriota, a primeira nova espécie de mamífero lá descoberta em mais de um século.

Como mostra o A. sapidus é claramente menos de um século. De facto é bastante menos. Num comentário a esta notícia, Darren Naish, compilou uma lista de 30 espécies de mamíferos descobertas na Europa nos últimos 100 anos, no Tetrapod Zoology. A lista inclui roedores, musaranhos, toupeiras e morcegos, alguns deles descritos há muito pouco tempo. Há espécies de morcegos descritas já neste século. Mesmo de mamíferos terrestres há descobertas recentes, como um musaranho em 1989.

Embora o tal rato cipriota não seja "a descoberta do século", não deixa de ser importante e, quando o artigo científico for publicado, muito provavelmente colocarei algo aqui no Cais de Gaia. É pena que a excitação pela descoberta de uma nova espécie de roedor não seja de todo equivalente ao entusiasmo gerado pela conservação dos roedores já descritos. Se até lá a criaturinha não desaparecer, nas próximas férias vou fazer uma pequena expedição para tentar fotografar o rato-de-água lusitano, para substituir a imagem desta contribuição, para a qual não consegui indicação do fotógrafo nem de eventuais direitos de autor.

Ficha técnica
Comunicado de imprensa na National Geographic.

quarta-feira, outubro 18, 2006

Os orangotangos confusos

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Esta imagem de um orangotango, Pongo pygmaeus, escondido debaixo de uma saca, ilustra um pouco a nossa perspectiva relativamente a estes animais, pelo menos quando comparada com a visão que temos dos outros grandes símios. Quando se fala em animais não humanos inteligentes pensamos em chimpanzés, depois em gorilas, e raramente nos orangotangos. Trata-se de uma injustiça, pois, por exemplo, como vimos numa contribuição anterior, os orangotangos mostram um desempenho semelhante aos dos chimpanzés, gorilas, e crianças humanas de dois anos, nos chamados testes de deslocamento invisível. Resolvi por isso voltar ao tema das capacidades cognitivas dos grandes símios, embora sob uma perspectiva algo diferente, focando um teste em que todos falham. Curiosamente, os orangotangos, e todos os outros grandes símios, têm um desempenho muito pobre numa variante dos testes de deslocamento chamada tarefa de duplo deslocamento invisível. [.. ler mais]

Estava com uma certa preguiça em retomar este tema, e o regresso é motivado em parte por um certo desapontamento em não possuir a menor aptidão artística. Quando vejo, nesta página de pinturas premiadas de Carel Brest van Kempen, a terceira imagem, em que um orangotango olha com alguma curiosidade para os elefantes que se deslocam abaixo, sinto uma vontade imensa de ser capaz de criar algo semelhante. Infelizmente tenho que me ficar pela conversa, mas pelo menos é por uma boa causa. O artigo que fala do deslocamento duplo é da autoria de Joseph Call e foi publicado na revista Journal of Comparative Psychology (ref1). Numa tradução livre do resumo:
Juvenis e adultos de orangotangos (n = 5; Pongo pygmaeus), chimpanzés (n = 7; Pan troglodytes), e crianças de 19 a 26 meses de idade (n = 24; Homo sapiens) foram confrontadas com deslocamentos visíveis e invisíveis. Foram apresentados três recipientes formando uma linha recta, e foi usada uma pequena caixa para deslocar uma recompensa debaixo delas. Os sujeitos foram confrontados com três tipos de deslocamento: simples (a caixa visitou um recipiente), duplo adjacente (a caixa visitou dois recipientes contíguos), e duplo não adjacente (a caixa visitou dois recipientes não contíguos). Todas as espécies tiveram desempenhos com níveis comparáveis, resolvendo todos os problemas excepto os deslocamentos invisíveis não adjacentes. Os deslocamentos visíveis eram mais simples que os invisíveis, e os deslocamentos simples eram mais simples que os duplos.

Os orangotangos têm um desempenho equivalente ao das outras espécies, inclusive nos testes em que falham. Não deixa de ser curioso que, quando se visitavam dois recipientes contíguos e depois se mostrava a pequena caixa vazia, os sujeitos da experiência não tenham grandes dúvidas em apontar um dos dos dois recipientes visitados. Mas, quando se visitavam os recipientes das extremidades saltando o do meio, muitas vezes as crianças e os antropóides escolhiam o do meio. O autor do estudo fez um outro teste onde este falhanço é mais óbvio:
Numa segunda experiência, os sujeitos viram colocar as recompensas em dois recipientes adjacentes ou não adjacentes sem efectuar deslocamentos. Todas as espécies escolheram o recipiente vazio de forma mais frequente quando os recipientes com a recompensa eram não adjacentes do que quando eram adjacentes. Avançamos como hipótese que um enviesamento de resposta e um problema de inibição eram responsáveis pelo fraco desempenho em deslocamentos não adjacentes.

É sempre difícil interpretar resultados negativos. Será que o falhanço se deve aos atropóides e crianças de dois anos não possuirem as capacidades mentais necessárias, ou será que simplesmente acham a tarefa demasiado difícil e preferem não se dar ao trabalho? Os autores pensam que se trata provavelmente da segunda opção. Eu apresentei este artigo porque, tal como nos exemplos sobre a batota dos cães, mostra que é precisa muita cautela ao interpretar estudos sobre as capacidades cognitivas dos animais.

Eu referi acima que, quando se fala em animais não humanos inteligentes, se pensa em chimpanzés. Na verdade não é bem assim: para muitas pessoas o paradigma da inteligência animal são os golfinhos. As próximas contribuições sobre este tema irão focar os mamíferos aquáticos. Quão inteligentes são de facto os cetáceos?

Ficha técnica
Imagem da gorila no início da contribuição cortesia de Aaron Logan, retirada da sua galeria LIGHTmatter.

Referências
(ref1) Call J. (2001). Object permanence in orangutans (Pongo pygmaeus), chimpanzees (Pan troglodytes), and children (Homo sapiens). J Comp Psychol 115:159–171. Laço DOI.

terça-feira, outubro 17, 2006

Piolho de peixe


Esta foto de Alexandra Morton mostra um parasita, o Lepeophtheirus salmonis, também chamado piolho do mar. Esta animal é um incómodo para os salmões adultos, embora em geral não coloque em grande perigo as suas vidas. As coisas são um pouco diferentes para os juvenis dos salmões, pois quando se tem menos de 3 centímetros de comprimento uma só destas criaturas pode ser suficiente para provocar a morte. Nas populações de salmão selvagem a mortalidade juvenil dos salmões devido a estes parasitas não é muito elevada. Isso sucede porque os piolhos do mar não conseguem sobreviver em água doce e assim os jovens salmões nascem num ambiente livre de piolhos. Quando os jovens seguem para o mar vivem durante bastante tempo longe dos cardumes dos adultos, pelo que a probabilidade de serem atacados pelos parasitas é muito pequena. O problema é que os seres humanos intrometeram-se nesta relação entre os salmões e os seus parasitas. [... ler mais]

As coisas mudaram com o aparecimento destas coisas que nos últimos decénios têm invadido zonas costeiras em muitas partes do mundo:

Embora eu pessoalmente prefira sardinhas, e não goste por aí além de salmão, um grande número de pessoas parece considerar esse peixe uma iguaria, e as explorações de aquicultura intensiva de salmão têm crescido como cogumelos. Para além do carácter insensato desta actividade, pois trata-se um carnívoro que tem que ser alimentado com produtos de origem animal, a concentração de peixes num espaço tão pequeno levanta problemas ecológicos graves. Os salmões aprisionados num volume muito pequeno, com um volume de água por animal correspondente ao de uma banheira, contraem todo o tipo de doenças que transmitem às populações selvagens. Para além disso, os animais presos adquirem enormes cargas de parasitas. Durante algum tempo discutiu-se até que ponto o problema seria grave, com as multinacionais que controlam a aquicultura a tentarem pintar um quadro de tons suaves. Pois bem o debate acabou. O panorama é desastroso. Após um estudo exaustivo Martin Krkosek e colegas publicaram um artigo verdadeiramente arrepiante nos Proceedings of the National Academy of Sciences (ref1). Numa tradução livre do resumo:

O declínio continuado das zonas de pesca e o aumento do consumo global de peixe levou a um aumento da aquicultura de 10% ao ano no último decénio. A associação das explorações piscícolas com o aparecimento de doenças em populações simpátricas de peixes selvagens permanece uma das ameaças que a aquicultura coloca aos ecossistemas costeiros e zonas pesca mais controversas e por resolver. Relatamos uma análise exaustiva da progressão e impacto de parasitas com origem em explorações piscícolas na sobrevivência de populações de peixes selvagens. Juntámos conjuntos de dados sobre a transmissão e patogeneicidade de piolhos do mar (Lepeophtheirus salmonis) em juvenis de salmões rosa (Oncorhynchus gorbuscha) e salmão chum (Oncorhynchus keta) migradores. Piolhos com origem nas explorações induziram uma mortalidade de 9-95% em várias populações simpátricas de salmões rosa e chum selvagens. As epizootias surgem através de um mecanismo que é novo para a nossa compreensão de doenças infecciosas emergentes: as explorações piscícolas sabotam o papel funcional da migração dos hospedeiros na protecção de hospedeiros juvenis de parasitas associados com hospedeiros adultos. Embora os ciclos de vida migratórios do salmão do Pacífico separem naturalmente os adultos dos juvenis, as explorações piscícolas fornecem ao Lepeophtheirus salmonis acesso a hospedeiros juvenis, neste caso aumentando as taxas de infecção durante pelo menos os primeiros 2.5 meses da vida marinha dos salmões (cerca de 80 km da rota migratória). A separação espacial entre juvenis e adultos é comum em peixes de águas temperadas, e com a continução do crescimento rápido da aquicultura, este mecanismo de doença pode desafiar a sobrevivência das economias e dos ecossistemas costeiros.

O ênfase é meu. Os pobres juvenis não têm hipótese, no seu caminho para o mar há uma nuvem de piolhos proveniente das explorações de salmão à qual não conseguem escapar. O salmão selvagem caminha para a extinção se a actividade das multinacionais de aquicultura intensiva continuar ou não for modificada. No Canadá, onde este estudo foi efectuado, não é apenas o salmão que está em perigo, todo o ecossistema fluvial que depende da migração dos salmões, incluindo por exemplo os ursos e águias pesqueiras, está em risco. Tudo para que alguns europeus e norte-americanos possam comer regularmente salmão. Como leitura de introdução ao tema recomendo a leitura do artigo da Watershed Watch Salmon Society (ref2).

Ficha técnica
Imensas imagens dos vários estágios de ataque por parasitas, da autoria de Alexandra Morton pode ser encontradas nesta página da Universidade Simon Fraser. Devo avisar que impressionam um bocado.

Referências
(ref1) Martin Krkosek, Mark A. Lewis, Alexandra Morton, L. Neil Frazer, and John P. Volpe (2006). Epizootics of wild fish induced by farm fish. Proc. Natl. Acad. Sci. USA, Laço DOI
(ref2) Watershed Watch Salmon Society (2004). Sea Lice and Salmon: Elevating the dialogue on the farmed-wild salmon story.PDF.

sexta-feira, outubro 13, 2006

Dia da família numerosa

Todos os dias se celebra alguma coisa, nalgum lugar do mundo. Alguns países dedicam no entanto dias a coisas que à primeira vista causam estranheza. Os habitantes do Canadá escolheram uma família de insectos para "honrar" nesta data. Ainda por cima não se trata de insectos nobres como a abelha ou o bicho-da-seda: hoje no Canadá é o dia do gorgulho (caruncho). Isso mesmo, aqueles insectos "narigudos" que aparecem, volta e meia, no arroz ou cereais mal fechados e esquecidos durante algum tempo. Os gorgulhos partencem à família de insectos chamada Curculionidae que tem para cima de 40,000 espécies identificadas. Para situar bem este número, deve notar-se que foram descritas qualquer coisa como 5,500 espécies de mamíferos. Afinal talvez os gorgulhos mereçam algum reconhecimento. [... ler mais]

Dada a importância dos curculionídeos no que se refere ao número de espécies, resolvi por isso associar-me à data e colocar no Cais de Gaia esta imagem de dois Rhopalapion longirostre atarefados na tarefa que assegura a perpetuação da espécie.


Descobri o tal feriado do Canadá no blog Rigor Vitae: Life Unyielding, de Carel Brest van Kempen, que se define assim:

Um biólogo falhado com habilitações para ser um varredor de ruas, porta-voz da NASA, ou artista da vida selvagem. Decidiu-se pela terceira opção.

Uma ilustração de um gorgulho, da sua autoria, pode ser vista na contribuição em que discute o tal dia do gorgulho no Canadá. Vale bem a pena uma visita. Bom dia do gorgulho para todos!

Já gora, em certas zonas de Portugal os gorgulhos também são chamados carunchos e não sei qual dos termos vingou no Brasil, ou se um outro termo qualquer é utilizado. A mão cheia de leitores brasileiros que passam por aqui, quase todos daquela que deve ser uma cidade magnífica, Curitiba no Paraná, que tenho que visitar um dia destes, talvez me possam informar.

Adenda. (16 Outubro 2006). Em mais um exemplo a juntar às muitas razões pelas quais não se deve acreditar em tudo o que se lê na internet, Carel Brest van Kempen confessa, nos comentários, que afinal o tal "feriado nacional" só é celebrado por uns quantos dos seus amigos.

Ficha técnica
Imagem de Rhopalapion longirostre cortesia de Jean-Jacques MILAN nesta página da Wikimedia Commons.

quinta-feira, outubro 12, 2006

Quando os camarões agitam as águas


Esta imagem mostra o krill do Pacífico, de seu nome científico Euphausia pacifica, a sair do seu ovo e a iniciar o seu estádio larvar. Notem bem a escala: o traço corresponde a um décimo de milímetro. Ao completar o seu desenvolvimento esta espécie de krill cresce qualquer coisa como um factor de 100, atingindo um tamanho máximo que ronda os 2 centímetros, mas mesmo assim é uma criatura pequena. Só que pequeno é muito diferente de insignificante, muitas vezes as aparências enganam. Se, como indivíduos, não impressionam, as aglomerações destes camarões atingem números que desafiam a compreensão. Um trabalho recente, no fiorde de Saanich, na Colûmbia Britânica, estudou uma população onde havia qualquer coisa como 10,000 E. pacifica por metro cúbico, ou seja um animal a cada 5 centímetros. O mais incrível é que esse estudo sugere que este tipo de animais poderão desempenhar um papel importante, até agora ignorado, na produção de turbulência nos oceanos. [... ler mais]

O estudo que mede a turbulência dos eufausídeos é da Eric Kunze e colegas e foi publicado na revista Science (ref1). Numa tradução livre do resumo:

Medições numa região costeira mostraram turbulência que era três a quatro ordens de grandeza superior aquando da ascensão, durante o crepúsculo nocturno, de uma concentração de krill, aumentando a mistura diária no fiorde por um factor de 100.

Uma ordem de grandeza é a expressão científica para um factor de 10, um aumento de três a quatro ordens de grandeza significa 1,000 a 10,000 vezes mais. Mesmo tendo em linha de conta a curta duração da subida (e posterior descida) do krill isso é suficiente para que a mistura das águas nos vários níveis de profundidade seja 100 vezes maior que na ausência do krill. Este processo de mistura das águas tem influências óbvias na produtividade biológica local e até noutros temas muito em voga como o ciclo do carbono, e o clima:
Porque as camadas de organismos nadadores que migram livremente se encontram em grande parte do oceano, turbulência gerada por processos biológicos pode afectar (i) o transporte de nutrientes inorgânicos para a superfície, muitas vezes pobre em nutrientes, a partir de níveis estratificados de águas subjacentes ricas em nutrientes, afectando a produtividade biológica, e (ii) a troca de gases atmosféricos como o CO2 com o interior do oceano estratificado, que não tem comunicação directa com a atmosfera.

Notem bem o ênfase no estratificado, termo que aparece várias vezes. É de facto importante notar que, contrariamente ao que possa parecer óbvio, a água no oceano mistura-se muito pouco entre as diferentes profundidades. Os processos de mistura são importantes pois controlam muitas das propriedades dos oceanos, em particular as trocas entre a camada mais superficial, em contacto com a atmosfera, e as regiões mais profundas. Os processos são muito lentos e são controlados pelo quebrar de ondas internas geradas pelos ventos e marés. Como esse ponto me parece importante, não resisto a citar partes do interior do estudo, que não fazem parte do resumo acessível a todos.
As nossas medições tiveram lugar durante Abril de 2005. Durante esse período os ventos foram sempre muitos ligeiros. As águas abaixo de 5 metros eram fortemente estratificadas, com frequências de flutuação um centésimo de radiano por segundo. Estratificações ainda mais elevadas foram encontradas acima, com uma camada bem misturada com uma espessura não excedendo 3 metros.

Os autores seguiram as movimentações do krill usando métodos acústicos, ou seja ecos de ondas sonoras que permitem detectar a posição dos cardumes. Eco não é necessariamente o termo adequado mas confesso que não sei muito bem como traduzir backscatter. No que se segue vou utilizar retrodifusão, para me referir aos ecos enviados na direcção em que as ondas sonoras forma emitidas.
Durante a luz do dia, o nível denso de krill retrodifusor permanecia estacionário a cerca de 100 metros, e as taxas de dissipação turbulentas eram próximas do nível de ruído instrumental de um milésimo de milionésimo de Watt por kg, um valor comparável aos sinais encontrados tipicamente em mar aberto.

Os 100 metros de profundidade não são um valor típico, mas têm aver com as características deste fiorde, os E. pacifica não podem descer mais pois as águas abaixo são anóxicas, devido à decomposição de matéria orgânica pelas bactérias. Os valores das taxas de dissipação dados aqui aqui são importantes sobretudo para comparação com o que vem a seguir. A mim dizem-me qualquer coisa, pois a turbulência é um tema em que estou particularmente à vontade, mas não se preocupem, não vou começar um tratado sobre o tema. O que é importante é ver como variam.
No crepúsculo nocturno do dia 28 de Abril, a camada retrodifusora começou a subir e a ficar mais difusa. Inicialmente, não se observou nenhum aumento na microstrutura. Contudo, à medida que a base da camada retrodifusora (que se pensa estar associada aos eufausídeos maiores, com números de Reynolds suficentemente elevados para gerar turbulência) começou a migrar, os níveis de turbulência entre 30 a 100 metros de profundidade aproximaram-se de um décimo de milésimo a um centésimo de milésimo Watt por kg num intervalo de 10 a 15 minutos. Estes valores são 100 a 1000 vezes maiores que as taxas de dissipação no oceano estratificado profundo e são comparáveis aos valores encontrados em canais de maré turbulentos.

Aqui há vários pontos importantes. O krill migra em massa para a superfície durante a noite, com os mais pequenos a partirem uns minutos mais cedo que os maiores. São os maiores que geram a maior parte da turbulência. Notem a velocidade razoável, demoram 10 a 15 minutos a percorrer os 100 metros. Por outro lado passa-se de um milésimo de milionésimo a um centésimo de milésimo nos níveis de turbulência! Ou seja, de "zero ponto 8 zeros um" para "zero ponto 4 zeros um"; as tais quatro ordens de grandeza, ou seja um factor de 10,000 que referi atrás. Mesmo quando comparado com o que se passa no mar profundo o valor é 100 a 1000 vezes maior. O krill quando remexe as águas mistura-as de facto bem.

Os autores notam algo mais que também é interessante. As observações sugerem perturbações da ordem de 1 a 10 metros, o que não combina com os cerca de 1.5 centímetros dos indivíduos no cardume de krill. A explicação segundo eles é que os eufausídeos actuam de forma concertada, e não de forma individual, quando nadam para a superfície. Este comportamente é típico dos cardumes de muitas espécies, pelo que este processo não estará por isso limitado ao krill. Toda uma vasta gama de organismos grandes e pequenos, do zooplanctôn (0.5 cm) a cetáceos (da ordem de 10 metros) podem participar, e de facto gerar a maior parte dos níveis de turbulência nas camadas superiores do oceano, dominando os processos de mistura das águas nas regiões onde os organismos marinho são particularmente abundantes. Note-se em particular que isto é também é válido para o krill do Antárcticol E. superba, cujo papel importante no ciclo do carbono já tinha sido discutido aqui.

Nota: este artigo tinha-me passado um pouco "ao lado" quando li a Science. Só me dei conta dele quando li sobre ele no Deep-Sea News.

Ficha técnica
Imagem do krill a sair do ovo, cortesia de Jaime Gómez-Gutiérrez, obtida por intermédio da Wikimedia Commons, nesta página.
Imagem do cardume de krill obtida das páginas do Ocean Explorer da NOAA, aqui.

Referências
(ref1) Eric Kunze, John F. Dower, Ian Beveridge, Richard Dewey, and Kevin P. Bartlett (2006). Observations of Biologically Generated Turbulence in a Coastal Inlet. Science 313 (5794), 1768. Laço DOI

sexta-feira, outubro 06, 2006

O monstro com dentes grandes como pepinos

Uma das muitas obras antigas, que encontrei no meu local de férias, foi o livro Water Reptiles of the Past and Present de Samuel Wendell Williston, publicado em 1914. Uma das figuras que ilustra esse livro é esta imagem de um Elasmosaurus platyurus, que se sempre me fascinou quando era miúdo. Quando se pensa em plesiossauros a imagem que nos ocorre é exactamente esta. Contudo, esta postura pescoço-de-cisne está errada: as vértebras articulavam de uma maneira que restringia muito a mobilidade do pescoço, em especial no que se refere aos movimentos verticais. Além disso, o peso do pescoço era bastante grande relativamente ao peso total do corpo pelo que o centro de massa teria que estar muito mais dentro de água. Mas o que me leva a falar em plesiossauros não é a postura do pescoço, mas sim uma descoberta recente:

"Imaginem um animal tão comprido como um autocarro e com dentes tão grandes como pepinos. Ao mesmo tempo, imaginem que esse dentes se encontram numa cabeça na qual um homem adulto se pode deitar na língua e ser engolido inteiro."

[... ler mais]


Estas palavras não são minhas, mas de Jørn Hurum e Hans Arne Nakrem, que descobriram, na Noruega, um fóssil quase completo de plesiossauro que terá vivido há cerca de 150 milhões de anos. Este fóssil é parte de um achado mais vasto, foram identificados restos de 28 répteis marinhos. Dessa amostra 27 animais eram semelhantes aos que tinham sido identificados em 2004, numa expedição preliminar. O vigésimo oitavo, identificado a 5 de Agosto, era algo diferente e ultrapassou as expectativas. tratava-se do "monstro dos pepinos".

Um elasmossauro é na verdade tão grande como um autocarro, mas a menos que os pepinos na Noruega sejam minúsculos, os tais "dentes tão grandes como pepinos" não caberiam na sua boca. Ora o elasmossauro é um caso extremo, nem todos os plesiossauros tinham um pescoço tão grande como o resto do corpo. Alguns, como este Cryptoclidus, que media "apenas" quatro metros de comprimento, mostravam proporções menos exageradas.


Eis alguns exemplos, com vários níveis de "pescocidade", que podem ser encontrados nas páginas do Oceans of Kansas Paleontology de Mike Everhart:
Todos estes se enquadram, apesar de tudo, na ideia que a maior parte do público tem dos plesiossauros: algo que parece uma cobra enfiada dentro de uma tartaruga marinha. Há no entanto um grupo de plesiossauros que não se enquadram nessa imagem, os pliosauros, que se parecem com algo saído de um pesadelo. Estes eram poderosas máquinas assassinas, com bocarras enormes e aspecto feroz. O "monstro" da Noruega pertence a esse grupo. A que se assemelhava esse animal? Podemos ver aqui uma reconstituição do "monstro dos pepinos" a caçar um plessiosauro de menores dimensões.

Estes animais apesar da "escassez" de pescoço são facilmente identificados como plesiossauros por possuirem 4 membros em forma de remos e caudas curtas. Uma criatura tão grande e armada de "pepinos" de tão grandes dimensões tinha pouco a temer das outras espécies de predadores no seu meio ambiente, e podia comer tudo o que conseguisse engolir, incluindo animais de uma outra família de répteis marinhos, os ictiossauros.

Para aqueles que não ficaram grandemente impressionados, não resisto a mostrar mais imagens. Os pliossauros não são novidade, são conhecidos há muito tempo. O "monstro" é invulgar por ser um esqueleto quase completo. Para ver ilustrações de um outro pliossauro, provavelmente muito semelhante ao "dentes de pepino", sigam os apontadores abaixo para as páginas do Oceans of Kansas. Verifiquem pelo menos a primeira, adoro aquela imagem, parece realmente saída de um pesadelo dos mais aterradores.
  • Quando o caçador é caçado. Um Brachauchenius lucasi ataca um mosassauro do género Clidastes, muito mais pequeno. Topem-me só aqueles "pepinos". Arte de Dan Varner.
  • Eis novamente o Brachauchenius lucasi prestes a fazer uma refeição de uma infeliz tartaruga. Arte de Dan Varner.
  • Desta vez o Brachauchenius prepara-se para engolir uma lula. Arte de Dan Varner.
Se estão com dificuldade em imaginar o tamanho destes bichinhos, nada melhor que imagens de humanos frente ao esqueleto de um Kronosaurus, que tinha um tamanho comparável ao do "monstro" norueguês e ao do Brachauchenius.
  • Para os que pensam que a história de um ser humano se poder deitar na boca de um destes bichinhos é um exagero, eis uma senhora perto de um esqueleto de Kronosaurus queenslandicus.
  • Eis aqui uma imagem de um preparador a trabalhar no crânio (com 3 metros) do Kronosaurus, que responde à questão do quão grandes são os pepinos na Noruega.
É quase impossível não ficar fascinado com tais criaturas. É claro que não podia falar numa descoberta paleontológica sem mostrar os fósseis. Eis aqui uma imagem das vértebras do "monstro dos pepinos" no local da escavação, com um dos descobridores, Jørn Hurum, a servir de escala.

Nota: O comunicado de imprensa entretanto desapareceu pois houve progressos na história. Falo disso aqui.

Ficha técnica
Não só imagens, mas também todo o tipo de informações sobre répteis marinhos extintos podem ser encontrados nas páginas de Mike Everhart, um dos melhores recursos de paleontologia na internet, o Oceans of Kansas Paleontology.
A foto do Cryptoclidus no Oxford University Museum of Natural History foi retirada desta página da Wikimedia Commons, user Ballista.

Referências
(ref1) Williston, S. W. 1914. Water Reptiles of the Past and Present. Chicago Univ. Press. 251 pp.

Macaquinho de imitação

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O macaquinho resus, de seu nome científico Macaca mulatta, não é tão desinteressante como o bocejo do ser humano deixa antever. Na verdade não se trata de um bocejo, este abrir da boca é parte de um trabalho científico bastante sério. Já referi aqui por diversas vezes que aquilo que os cientistas fazem nem sempre desperta grande entusiasmo e motivos de conversa na sua vida social. Por exemplo, como explicar que, depois de anos de estudo, faculdades, mestrados e doutoramentos, se ganhe a vida a fazer caretas a pequeninos macacos recém nascidos? Por estranho que pareça, os cientistas da imagem procuram resposta a algumas questões importantes, não estão apenas a tentar confundir o macaquinho. Neste caso trata-se de procurar compreender um comportamento que existe também nos bebés humanos. [... ler mais]

O pequenito da imagem acima, no seu primeiro dia de vida, face ao abrir da boca do ser humano, reagiu de forma semelhante.

Mas nada melhor do que ver toda a cena em filme (AVI 3.3 Mbytes). Notem que o macaquinho dá sobretudo uma grande quantidade de "estalinhos" com os lábios.

Esta capacidade dos macacos imitarem expressões não tinha ainda sido descrita na literatura. Pier Ferrari e colegas relatam-na pela primeira vez num artigo recente na revista PLoS Biology (ref1). Os autores estudaram 21 macaquinhos nos primeiro, sétimo, e décimo quarto, dias de vida. Numa tradução livre do resumo:
A emergência de comportamentos sociais cedo na vida é provavelmente crucial para o desenvolvimento de relações mãe-filho. Pensava-se que alguns desse comportamentos, tais como a capacidade dos recém-nascidos imitarem movimentos faciais dos adultos, estariam limitados aos humanos e talvez à linhagem dos antropóides. Relatamos aqui as respostas comportamentais de macacos resus infantis (Macaca mulatta) às seguintes expressões faciais e gestos de humanos: estalar dos lábios, mostra da língua, abrir da boca, abrir da mão, e fechar e abrir dos olhos (condição de controlo). No terceiro dia de vida os macacos infantis imitam o estalar dos lábios e a mostra da língua.

Eis aqui o investigador a fazer o gesto ao macaquinho:

A resposta não se fez esperar:

Mais uma vez a resposta pode ser seguida em filme (AVI 4.0 Mbyte). Não deixa de ser engraçado, ao contrário do que sucedia no filme anterior, notar a falta de interesse do macaquito pelo humano, pelo menos até ele começar a mostrar a língua. Mais uma vez o macaquinho dá imensos "estalinhos" com os lábios. Continuando com a introdução:
No primeiro dia de vida, o abrir de boca do modelo suscitou um comportamento correspondente (estalar dos lábios) nos bebés. Estas respostas imitativas estão presentes num estádio inicial de desenvolvimento, mas estão confinadas aparentemente a uma janela temporal estreita. Como o estalar dos lábio é um gesto fulcral nas interações cara a cara dos macacos resus, a imitação neonatal pode servir para afinar as respostas de parentesco dos bebés ao seu mundo social. As nossas descobertas fornecem uma descrição quantitativa de imitação neonatal numa espécie primata não humana e sugerem que estas capacidades imitativas, ao contrário do que se pensava, não são exclusivas das linhagens humana e dos antropóides.Sugerimos que as suas origens evolutivas podem ser traçadas a gestos de filiação com funções comunicacionais.

Os autores referem que nos seres humanos há alguma variabilidade. Algumas crianças não mostram este tipo de comportamento, e apenas o deitar a língua de fora e abrir da boca têm um carácter mais ou menos geral. Nas crianças humanas este comportamento ocorre durante muito mais tempo que nos resus, durando cerca de 2 a 3 meses, período em as crianças aprendem a vocalizar e sorrir a outros seres humanos. Os chimpazés também imitam de forma semelhante a partir da primeira semana de vida até cerca dos 2 meses. Os autores referem no entanto que é preciso alguma cautela antes de considerar homólogas as respostas nos seres humanos e nos outros primatas. Há ainda muito poucos estudos feitos. Quanto às diferenças temporais do fenómeno entre os resus por um lado e chimpanzés e humanos por outro, os autores notam:
Contrastando com os humanos e chimpanzés, os nossos bebés macacos mostraram o fenómeno durante apenas uns poucos dias após o nascimento. Tal como mencionado acima, alguns indivíduos ainda mostravam imitação do estalar dos lábios ao sétimo dias, mas não para além disso, Como se podem explicar tais diferenças entre espécies? O desenvolvimento motor e cognitivo é muito mais rápido nos macacos que nos humanos e chimpanzés. Logo à uma semana, os bebés macacos podem abandonar as suas mães durantes curtos períodos de tempo.

Embora seja preciso alguma cautela, pois os macaquitos estavam a interagir com seres de outra espécie, com os quais não tinham um relacionamento afectivo, parece tratar-se realmente de uma questão de precocidade no desenvolvimento:
Nos humanos, e nos chimpanzés, os neonatos permanecem em contacto com as suas mães durante muito mais tempo, e a mãe é o único responsável por cuidar da criança. Logo, a imitação neonatal ocorre durante um período que, considerando os padrões típicos da espécie para o desenvolvimento de capcidades motoras e cognitivas, é comparável com que é descrito para humanos e chimpanzés.

Para além de terem mostrado que a noção de que os antropóides imitam, mas os macacos não, estava errada, os autores referem alguns resultados interessantes de outros trabalhos. Um que eu acho curioso é que os macacos percebem quando estão ser imitados pelos seres humanos.

Os macacos adultos também imitam prontamente os seus congéneres quando estes desempenham actividades relacionadas com a ingestão de alimento. Os macacos possuirão assim um mecanismo para ajustar o seu comportamento com o que observam nos outros indivíduos, embora em geral estejam limitados a um reportório de comportamentos típicos da sua espécie, que de certa forma estarão gravados nos seus cérebros. O comportamento é inato, não aprendido. Quanto ao mecanismo que explica este comportamento, os autores favorecem uma explicação baseada em descobertas neurofisiológicas, a dos espelhos neuronais, que se sabe existirem no cérebro dos macacos.
Os neurónios nestes espelhos ficam activos quando o macaco executa uma acção específica com a sua mão (ou boca) e quando o macaco observa acções semelhantes com a mão (ou boca) executadas por outro indivíduo. Foi descrita recentemente uma classe de espelhos neuronais que responde a acções comunicadas por gestos faciais como o mostrar da língua ou o estalar dos lábios. Levando em consideração esses dados neurofisiológicos, os nossos dados concordam com a hipótese dos "espelhos neuronais", de acordo com a qual a observação de gestos com a boca activa directamente programas motores do mesmo tipo nas áreas pré-motoras do cérebro dos macacos, levando-as à ressonância e como consequência a darem lugar a uma réplica dos gestos observados.

Os autores referem ainda que a imitação neonatal nos humanos pode ser interpretada da mesma forma, e que há mesmo estudos que apoiam a existência de um sistema de espelho neuronal nos humanos homólogo aos dos macacos. Quanto à função deste comportamento, os autores sugerem que os macaquinhos estão a "afinar" os gestos que servem para identificar os indivíduos filiados num certo grupo. O comportamento de estalar os lábios, muitas vezes acompanhado de mostrar da língua é utilizado pelos macacos quando se aproximam para iniciar sessões de catamento. O artigo tem mais um vídeo interessante, de uma troca de estalidos de lábios entre mãe e filho (AVI 2.5 Mbytes) num cenário seminatural.

Não podia terminar sem mais imagens de macacos! Este artigo comprova, macaco vê:

Macaco faz:

Eu tinha já falado de macacos resus a propósito das vocalizações, neste artigo aqui. É sempre interessante descobrir mais pontos em comum com uma espácie cujo mais recente antepassado comum com os seres humanos terá vivido há mais de 25 milhões de anos.

Ficha técnica
Imagens e filmes retirados do artigo dado abaixo como ref1, e também da sinopse da autoria de Liza Gross, indicada como ref2

Referências
(ref1) Ferrari PF, Visalberghi E, Paukner A, Fogassi L, Ruggiero A, et al. (2006) Neonatal Imitation in Rhesus Macaques. PLoS Biol 4(9): e302. Laço DOI.
(ref2) Gross L (2006) Evolution of Neonatal Imitation. PLoS Biol 4(9): e311. Laço DOI.